3
- EMANCIPAÇÃO ESPIRITUAL DO HOMEM |
l.
IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA
- Colocando o problema da evolução humana em termos de imanência
e transcendência, segundo a acepção moderna desses vocábulos,
podemos compreender melhor a natureza transcendente do horizonte espiritual.
Os quatro horizontes que o antecedem: o tribal, o agrícola, o civilizado
e o profético, representam o período de imanência do processo
evolutivo. Nesse período, de acordo com o "princípio da imanência",
de Lê Roy, toda a potencialidade espiritual do homem encontra-se em desenvolvimento,
tudo o que nele é implícito transita para o explícito.
A experiência da magia, dos mitos agrários e da mitologia civilizada,
das religiões organizadas e da eclosão profética, nada
mais é do que uma sequência de fases do período imanente,
em que o homem acorda em si mesmo as forças latentes da alma, preparando-se
para a fase de transcendência que virá com o horizonte espiritual.
Esse é um dos motivos por que a Revelação Cristã
se mostra mais poderosa e atuante que as anteriores. Já vimos que o horizonte
espiritual aparece com Jesus, com ele se define. Vimos também que Israel
representou, mais do que os outros países, o momento em que as forças
desenvolvidas no período da imanência atingiram a sua culminância.
Assim, o próprio desenvolvimento histórico explica e justifica
as afirmações místicas, aparentemente dogmáticas,
da supremacia espiritual de Israel e do seu papel de povo eleito. Para a mentalidade
mística dos horizontes anteriores, a posição de Israel
não poderia ser interpretada senão como uma determinação
celeste. A própria alegoria da Aliança confirma isto. O pacto
firmado entre Deus e seu povo é a simples divinização de
um sistema agrário de compromissos humanos. Mas era através dessa
alegoria que os antigos conseguiam entender e explicar uma realidade inexplicável,
qual fosse a supremacia espiritual do povo hebraico e o seu dever indeclinável
de liderança mundial.
A incompreensão do fato permanece ainda hoje, tanto no seio das religiões
cristãos quanto no próprio judaísmo. A expectativa milenária
do Messias, e a ambição do domínio universal e absoluto,
das seitas cristãs provindas do judaísmo, nada mais são
do que resíduos do período de imanência. A destinação
messiânica de Israel não foi e não é encarada no
seu sentido histórico, mas no seu antigo aspecto teológico. Daí
a razão do povo eleito esperar ainda o cumprimento da promessa divina,
e das seitas cristãs modernas, que se julgam herdeiras da mesma promessa,
insistirem tão firmemente nos seus direitos de dominação
e orientação exclusiva das consciências, para a salvação
das almas.
O Espiritismo, doutrina livre, dinâmica, sem dogmas de fé, sem
intenções exclusivas ou pretensões salvacionistas, corresponde
precisamente à fase de esclarecimento do horizonte espiritual. Por isso
é que ele se apresenta como desenvolvimento natural do Cristianismo,
sequência inevitável do processo histórico, enfrentando
o problema da salvação em termos de evolução, e
procurando explicar as alegorias do passado à luz da compreensão
racional. Curioso notar-se que, nesse ponto, os adversários do Espiritismo
o acusam de racionalismo sustentando a tese imanente, ou seja, a tese provinda
do período de imanência, segundo a qual existem mistérios
que a razão não alcança. Entre esses mistérios,
figura o da destinação messiânica de Israel, que, como vimos,
não era explicável no período anterior, mas hoje é
perfeitamente compreensível.
No período de imanência, o homem não havia atingido a emancipação
espiritual que lhe permitiria encarar os grandes problemas da sua própria
destinação. Possuindo, entretanto, o sentimento intuitivo desses
problemas, procurava racionalizá-los através de símbolos,
de alegorias. No período de transcendência, o homem, já
espiritualmente desenvolvido, possui os elementos necessários para enfrentar
esses problemas e resolvê-los. Isso não quer dizer, entretanto,
que o Espiritismo se considere, ou que os espíritas se considerem como
novos detentores da verdade absoluta. Pelo contrário: O Espiritismo proclama
a existência de problemas que são ainda insolúveis, como
o da própria natureza de Deus. Insolúveis, porém, no momento
presente, uma vez que o processo evolutivo levará o homem, progressivamente,
a desvendar os novos mistérios que lhe forem sendo propostos pela própria
evolução.
As reservas modernas quanto ao racionalismo são explicáveis, diante
da experiência que conduziu os homens ao ceticismo, à descrença,
ao materialismo, e consequentemente a uma posição incômoda,
de negativismo explícito ou implícito dos valores da vida. Mas
o racionalismo espirita representa precisamente o reajuste da posição
racionalista. Porque a razão aplicada ao julgamento do passado, em função
das conquistas ainda recentes do presente, provoca desequilíbrio do espirito,
quando se pretende estabelecer o absolutismo racional. No Espiritismo, a razão
é apresentada como uma função do espirito, um dos seus
instrumentos de ação, e não como o próprio espirito.
O absolutismo da razão não existe, embora a razão se apresente
como instrumento indispensável para o esclarecimento espiritual.
Por outro lado, é necessário considerar que a razão foi
a escada de que o homem se serviu, para superar os horizontes anteriores, libertando-se
do domínio das forças naturais ou instintivas. A razão
é, por assim dizer, a alavanca espiritual que elevou o homem do período
de imanência para o de transcendência, permitindo-lhe julgar-se
a si mesmo e delinear as perspectivas da sua própria libertação.
O Espiritismo, como doutrina que corresponde exatamente às aspirações
e as exigências do horizonte espiritual, não pode abrir mão
da razão, nem mesmo em favor da intuição, que pertence
a um período futuro do desenvolvimento humano.
2. DESENVOLVIMENTO DA RAZÃO - O horizonte
profético assinalou a fase culminante de desenvolvimento da razão.
Já tivemos ocasião de estudar os motivos dessa ocorrência,
no vasto período histórico que vai do IX ao III século
antes de Cristo, segundo a teoria de, John Murphy. Resta-nos apreciar a maneira
por que a razão vai progressivamente impondo os seus direitos, até
conquistar a supremacia necessária, para libertar o espírito humano
dos liames terríveis do passado.
Podemos observar com segurança o vigoroso surto da razão no horizonte
profético, a começar da própria agitação
profética na Palestina. Os conquistadores de Canaã carregavam
no espirito a herança das civilizações mesopotâmica
e egípcia. Os germes da razão estavam bem desenvolvidos naquelas
mentes inquietas, que procuravam construir um novo mundo para si mesmas e anunciar
aos demais povos o advento de uma nova ordem. Mas foram os profetas de Israel
os corifeus desse movimento renovador, quer levantando sua voz contra o apego
aos velhos hábitos, quer anunciando com insistência a aproximação
dos novos tempos.
Os debates teológicos de Israel aparecem como uma preparação
da efervescência medieval. Os profetas agitam a pasmaceira teológica
do povo eleito, propondo questões que perturbam a própria ordem
social. Ao mesmo tempo, na Grécia, a filosofia se desprende da sua matriz
órfica, supera o pensamento místico do orfismo tradicional, e
ensaia os primeiros passos da perquirição racional. Na própria
China estagnada surge a inquietação provocada pela introdução
do Budismo e pelo aparecimento do Confucionismo. Na índia védica,
submetida ao jugo das tradições, a renovação budista
mistura-se às influências procedentes do pensamento grego, cujo
poder de irradiação não conhece barreiras, no Ocidente
ou no Oriente. No mundo romano, a infiltração grega submetia as
tradições do Império e o politeísmo dominante ao
julgamento progressivo, que a contribuição judeu-cristã
iria acelerar de maneira decisiva.
O Cristianismo aparece como verdadeiro remate desse vasto processo. Jesus não
se limita a condenar o apego ao ritualismo religioso no mundo judaico. Ele proclama
a natureza espiritual de Deus, e consequentemente a do homem, filho de Deus.
Ensina a universalidade do espírito, rompendo assim as barreiras de todos
os preconceitos tribais, que dividiam a humanidade em grupos raciais ou religiosos.
Mostra que o samaritano podia ser melhor que um príncipe da igreja judaica,
e adverte à mulher samaritana que Deus devia ser adorado, não
através de fórmulas exteriores em locais considerados sagrados,
mas "em espirito e verdade".
Quando observamos o fenômeno do aparecimento e da propagação
do Cristianismo, primeiramente na Palestina, e depois no mundo, verificamos
que se tratava de uma verdadeira revolução. Mas a característica
dessa revolução é precisamente o apelo à razão.
O Cristianismo exigia das criaturas o uso desse poder misterioso do raciocínio,
que as fazia senhoras de si mesmas, responsáveis pelos seus atos. Contra
a autoridade das Escrituras e dos Rabinos, bem como da própria tradição,
Jesus proclamava a soberania da consciência. Limpar o vaso por dentro,
e não apenas por fora; servir-se do Sábado, em vez de escravizar-se
a ele; orar conscientemente, sabendo que Deus, sendo Pai, não dá
pedra a quem lhe pede pão, nem cobra a quem lhe pede peixe.
Os homens ainda não estão preparados para compreender todos os
princípios dessa revolução. Continuarão apegados,
por muito tempo, aos velhos moldes autoritários, subjugados pelos antigos
preceitos. Mas o fermento está lançado na medida de farinha, e
inevitavelmente a fará levedar. Os próprios apóstolos não
assimilarão suficientemente as lições do Mestre. Procurarão
ajustar o Cristianismo aos velhos moldes judaicos, retê-lo nas sinagogas,
prendê-lo ao templo de Jerusalém. Pedro, o velho pescador, não
admitirá cristão que não se submeta a ser circuncidado.
Mas Jesus conhece um homem que amadureceu o suficiente para fazer prevalecer
a razão sobre o costume, o uso, a tradição. Esse homem
é Paulo de Tarso, que promoverá no Cristianismo nascente o movimento
vivo de repulsa ao predomínio do passado.
A reforma grega do Orfismo pelo Pitagorismo, a reforma indiana do Hinduísmo
pelo Budismo, a reforma chinesa do Taoísmo pelo Confucionismo, e a reforma
síria do Judaísmo pelo Cristianismo, eis os grandes eventos históricos
que assinalam o advento mundial, no horizonte profético, da era da razão.
Pitágoras é o primeiro a ensaiar, na Grécia do século
sexto, e no mundo inteiro, a união do pensamento místico ao racional.
E a partir dos pitagóricos, o grande drama da evolução
humana, durante milênios, se desenvolverá nesse plano: a luta pela
racionalização da fé.
A crença pela crença, a fé pela fé, a obrigação
e a necessidade de aceitar a tradição, como verdade absoluta,
acabada e perfeita, são característicos dos horizontes primitivos,
das fases de predomínio do instinto e do sentimento. Na proporção
em que a razão se desenvolve, em que o homem aprende a pensar e a julgar,
a fé cega, tradicional. Já não pode satisfazê-lo.
A fórmula comodista: "Creio porque creio",
exigirá um substituto dinâmico e fecundo: "Creio
porque sei".
O horizonte profético se encerra com o predomínio da razão.
Ao contrário do que se costuma dizer, a razão não aparece
como exclusivamente grega, não obstante a contribuição
da Grécia seja a mais decisiva para o seu desenvolvimento. Encontramos,
como já vimos acima, o florescimento da razão ao longo de todo
o horizonte profético, prenunciando a supremacia mundial que ela deverá
assumir, com o advento do horizonte espiritual. Mas haverá ainda uma
grande fase histórica de reação, de luta profunda e morosa,
entre a razão e a fé, embora aquela tenha de sair triunfante.
3.0 DRAMA MEDIEVAL - A Idade Média é
a fase dramática do desenvolvimento da razão. A tentativa pitagórica
renova-se nesse vasto e sombrio período da história européia,
mas em condições completamente diversas. O Cristianismo nascente
recebera, desde a Palestina, um duplo impulso de racionalização:
de um lado, a insistência do Cristo em libertar os homens do dogmatismo
fideísta dos judeus; de outro, a influência do pensamento grego,
bem patente nos próprios evangelhos. "Religião do livro",
como mais tarde a chamariam os muçulmanos, penetrou essa nova religião
no Império Romano em meio à efervescência da decadência,
incentivando e acalorando os debates em torno dos problemas da fé. Mas
no próprio Cristianismo a contradição dialética
se acentua de maneira ameaçadora. Com o correr do tempo, a fé
conseguiu superar sua antagonista, a razão, e submetê-la ao seu
império. Nada exprime melhor esse fato do que a fórmula medieval:
"A filosofia é serva da teologia.".
Os que ainda hoje acusam o Cristianismo de religião reacionária
e obscurantista, em virtude do medievalismo e suas consequências, esquecem-se
de que foi ele a única religião capaz de incentivar o desenvolvimento
da razão, e até mesmo de preservar a herança cultural greco-romana
através do período bárbaro. Esquecem-se de que próximo
a Nazaré existia a Decápolis grega, e que o próprio nome
da nova religião derivou de uma palavra grega. Esquecem-se ainda dos
fatos históricos fundamentais do desenvolvimento do Cristianismo na Europa,
entre os quais devemos assinalar a aproximação constante com o
pensamento grego, o interesse pelas suas contribuições filosóficas,
a tentativa de "pensar o evangelho através da lógica grega",
e até mesmo a de platonizar e aristotelizar os fundamentos da nova religião.
A reação do fideísmo, entretanto, quase fez recuar o ímpeto
da razão. O passado mítico e místico da humanidade pesou
fundamente na balança. O próprio Cristo foi transformado em novo
mito, e suas expressões alegóricas, empregadas sempre num sentido
racional, esclarecedor, converteram-se em dogmas de fé. "O cordeiro
que tira o pecado do mundo", imagem explicativa, referente à crença
judaica na eficácia mágica do sacrifício de animais; "o
resgate dos pecados pelo sangue", alegoria ligada à antiga superstição
da era agrária, de purificação pela efusão de sangue;
"a transubstanciação do pão e do vinho em corpo e
sangue do Cristo", idéia mágica, de sentido alegórico,
proveniente dos antigos "Mistérios" das religiões orientais;
e assim tantas outras, adquiriram a força de preceitos literais, de ordenações
divinas. Ao mesmo tempo, as formas do culto exterior, das religiões pagãs
e judaicas, e as próprias festas do paganismo, foram adaptadas à
nova religião.
O
processo de sincretismo religiosos, hoje tão bem conhecido e estudado
pelos sociólogos, transformou o Cristianismo em novo domínio do
mito e da mística. Apesar de todo esse gigantesco esforço de asfixia
da razão, esta, entretanto, continuou a se desenvolver. Submetida ao
império da fé, constrangida a servir aos dogmas, em vez de criticá-los,
transformada em "serva da teologia", nem por isso a razão pôde
ser esmagada. Porque, mesmo para servir ao dogmatismo, ela conseguia agitar
e inquietar os espíritos. As heresias surgiram do chão "como
cogumelos", segundo a expressão de Tertuliano, e mesmo depois que
o principio de usucapião, do direito romano, foi empregado racionalmente
contra a razão, em defesa do fideísmo asfixiante, a razão,
continuou a abrir as suas brechas na muralha dogmática. O próprio
Tertuliano acabou como herege, e foram muitos os padres e doutores que, embriagados
pelo vinho grego da dialética, resvalaram para o abismo das condenações.
A famosa Querela dos Universais, provocada pelo desafio de Porfírio,
discípulo de Plotino, marcará a fase decisiva do desenvolvimento
da razão, no mais agudo período da consolidação
da dogmática medieval. Figuras brilhantes de pensadores cristãos
como estrelas perdidas no céu escuro do medievalismo, assinalarão
o roteiro da razão, como um traço de giz no quadro negro da época.
A partir dos hereges dos quatro primeiros séculos, sufocados pela violência
ortodoxa dos que se julgavam herdeiros exclusivos da era apostólica,
podemos gizar no quadro uma linha que passa por Agostinho, no século
V; por Erigena e Alcuíno, no século VIII; pelo dialético
Beranger de Tours, do século IX, que negava a Eucaristia; por Abelardo,
com seu "Sic et Non"; pelo trabalho dos "mestre de sentença",
entre os quais se destaca Pedro Lombardo; para, afinal chegamos a Tomás
de Aquino, que representa a codificação das contradições
medievais, com sua "Suma Teológica."
O drama da razão na Idade Média empolga pelos seus lances heróicos,
mas ao mesmo tempo assusta, pelo trágico de seus episódios cruéis.
Abelardo é uma das figura mais representativas, senão a própria
encarnação desse drama. Em pleno século XI, a aceitava
a supremacia da fé, mas chegou a tentar uma explicação
racional do dogma da Trindade, caindo na condenação de heresia.
Duas vezes foi condenado pelos Concílios. E para que não faltasse,
no simbolismo da sua vida, o colorido das paixões humanas da época,
temos o seu romance com Heloísa e o desfecho cruel a que é levado.
Dilthey considerou a Idade Média como um caldeirão, em que ferviam
as ideias, misturando, num gigantesco processo de fusão, as contribuições
do pensamento grego-romano com os princípios judeu-cristãos. Esse
imenso "cozido", que teve de ser preparado através de um milénio,
só estaria completo nos albores do século XIV, logo após
a codificação da "Suma Teológica".
A luta entre a razão e a fé encontra, portanto, o seu epílogo,
na Renascença. Embora tenhamos de reconhecer a sua continuidade, mesmo
em nossos dias, a verdade é que ela agora se processa em plano secundário,
como simples resíduo natural de épocas superadas. Descartes foi
o espadachim que deu o golpe final nesse duelo de milênios. Inspirado
pelo Espírito da Verdade, segundo a sua própria expressão,
o filósofo do "cogito" libertou a filosofia da servidão
medieval e preparou o terreno para o advento do Espiritismo. Mais tarde, Kardec
poderia exclamar como vemos no pórtico de O Evangelho Segundo o Espiritismo,
que "Fé inabalável é somente aquela que pode encarar
a razão face a face, em todas as etapas da humanidade". O que hoje
se condena como racionalismo não é propriamente a razão,
mas o absolutismo racional. A luta filosófica que se travou e ainda se
trava no nosso tempo já não se refere mais ao problema antigo
e medieval de razão e fé, mas às questões modernas,
tipicamente metodológicas, de razão e intuição.
É uma batalha que se trava no campo da teoria do conhecimento, e não
mais no campo da superstição e do dogmatismo fideísta.
Para o Espiritismo, essa batalha está superada.
A razão é apenas o instrumento de que o Espírito, o Ser,
em sua manifestação temporal, se serve para dominar o mundo. A
intuição é o processo direto de conhecimento, de que o
Espírito dispõe em seu plano próprio de ação
- o espiritual - e que desenvolverá no plano material, na proporção
em que o dominar pela razão. Mas a importância da razão,
no processo evolutivo do homem, como forma de libertação espiritual,
jamais poderá ser negada. Ao estudar o Renascimento, compreendemos o
papel do racionalismo, na emancipação espiritual do homem, e o
motivo por que o Espiritismo não pode abdicar de suas características
racionalistas, para realizar a sua missão emancipadora total.
4. A MATURIDADE ESPIRITUAL - O Renascimento assinala o momento histórico
de emancipação espiritual do homem. O processo de desenvolvimento
da razão aparece completo, nesse homem novo que, com Descartes, refuta
o dogmatismo medieval e proclama os direitos do pensamento. Não importa
que o fenômeno cartesiano pertença ao século dezessete quando
os albores da nova era já haviam surgido no catorze, no Quattrocento
italiano. O processo, como vimos anteriormente vinha de muito antes. Mas assim
como Abelardo encarna o drama medieval em todas as suas cores, Descartes é
quem encarna a epopéia do Renascimento, a vitória da razão
sobre o fideísmo medieval. Nele e através dele é que a
razão triunfa para sempre, marcando os rumos de um novo mundo, para a
humanidade renovada.
Mas o episódio histórico que assinalará, como verdadeiro
marco no tempo, o momento de emancipação espiritual do homem,
somente ocorrerá em fins do século dezoito, na efervescência
da revolução Francesa. O estabelecimento do Culto da Razão,
por Pierre Gaspar Chaumette, com a entronização da bailarina Candeille,
da Ópera de Paris, na presença de Robespierre, em 1793, na Catedral
de Notre Dame, é um episódio que representa verdadeira invasão
do processo histórico pelo mito. Aliás, toda a Revolução
Francesa apresenta esse curioso aspecto de uma revivescência mítica
em pleno domínio da história. Foi um movimento histórico
que se desenrolou no plano da alegoria. Cada uma das suas fases, e ela inteira,
no seu conjunto, aparecem como símbolos. Nesse vasto enredo alegórico,
o Culto a Razão é a simbologia específica, o episódio
lendário, que marca a vitória do homem sobre a lenda e o mito.
Chaumette foi guilhotinado em 1794. Pagou caro e sem demora a ofensa cometida
contra os poderes celestes, ao substituir em Notre Dame o culto da Mater Divina
pelo da Razão Humana. Assim entenderam, e ainda hoje o entendem, os supersticiosos
adversários do progresso espiritual do homem. Mas o sentido do episódio
não estava na heresia. Chaumette não era um iconoclasta, nem um
profanador de templos. Era apenas um intérprete do momento histórico
em que a Razão Humana proclamava a sua libertação da Mater
Divina, ou seja, em que o homem se libertava da Fé Dogmática,
para usar o raciocínio, duramente conquistado através dos milênios.
Fácil compreender-se o horror que a audácia revolucionária
provocou no mundo. A bailarina Candeille foi conduzida à Catedral de
Notre Dame sobre um andor, vestida de azul, com barrete frígio na fronte,
precedida de um cortejo de moças vestidas de branco, ostentando faixas
tricolores. A convenção decidira substituir a religião
tradicional por essa religião racionalista, e Robespierre presidiu a
cerimônia. Uma estátua do Ateísmo foi queimada durante a
festa que se seguiu. A religião de Chaumette era espiritualista, rejeitava
o ateísmo e o materialismo. Mas quem poderia entender esse espiritualismo
que não se submetia aos dogmas e aos sacramentos? Até hoje, o
episódio do Culto da Razão causa arrepios aos próprios
historiadores, que passam rapidamente sobre ele. É qualquer coisa de
monstruoso, que deve ser esquecido.
Durante dois meses, Novembro e Dezembro de 1793, o Culto da razão se
estendeu pela França. As igrejas foram desprovidas de seus aparatos tradicionais
e a Deusa Razão foi entronizada em cerimônias festivas. Carlyle,
referindo-se a cerimônia de Notre Dame, exclama indignado que a bailarina
Candeille era levada em procissão, e acrescenta: "escoltada por
música de sopro, barretes frígios, e pela loucura do mundo".
Realmente tudo parecia loucura, naquele momento irreal. A tradição
se esboroava. Os ídolos caíam. Bispos e padres renunciavam. Carlyle
acentua que surgiram de todos os lados: "curas com suas recém-desposadas
freiras". E uma bailarina da Ópera era transformada em deusa, embora
apenas de maneira simbólica.
Mas toda essa loucura nada mais era que a reação do espírito
contra a asfixia das tradições. Qual o momento de libertação
que não traz consigo esses arroubos? Passada, porém, as emoções
do início, o coração se acalma e a razão restabelece
as suas leis. Por outro lado, a "loucura do mundo", a que Carlyle
se refere, pode ser historicamente identificada com a própria razão,
pois vemo-la sempre denunciada pelos tradicionalistas, pelos conservadores renitentes,
nos momentos cruciais da evolução humana. Os homens velhos, como
as castas e os povos envelhecidos - ensina Ingenieros - vivem esclerosados em
suas armaduras ideológicas e não podem compreender, senão
como loucura, as verdadeiras revoluções sociais, que afetam os
interesses estabelecidos e transformam as idéias dominantes.
A vitória da razão, na sua luta milenar contra o obscurantismo
fideísta, não podia deixar de parecer um momento de loucura. Porque,
desenvolvida através de um laborioso processo de acúmulo de experiências,
de geração a geração, de civilização
a civilização, o seu crescimento se assemelha ao das plantas que
rompem o calçamento das ruas, para afirmar o poder da vida sobre as construções
artificiais. Sabemos hoje, pelo aprofundamento que o relativismo crítico
realizou na doutrina das categorias, de Kant, que a razão é o
sistema dessas categorias vitais, forjadas no processo da experiência
sempre renovada. Assim como a planta, rompendo o calçamento, afirma as
exigências vitais da natureza, em toda aparte, assim também a razão,
violentando as estruturas das velhas convenções, afirma as exigências
vitais da consciência humana. A primeira dessas exigências é
a liberdade, fundamento e essência do homem, que asfixiada durante um
milênio no caldeirão medieval, explodiu com o fragor de uma detonação
atômica, no período da Revolução Francesa.
Devemos ainda lembrar que o episódio do Culto da Razão tem o seu
lugar no centro de uma linha de acontecimentos históricos. Não
foi um caso isolado. Mesmo porque, na história, não existem casos
dessa espécie. Já tivemos ocasião de lembrar o antecedente
pitagórico da luta medieval entre a razão e a fé. Jérome
Carcopino estabeleceu as ligações entre o pitagorismo e o cristianismo
primitivo, nos seus estudos sobre a conversão do mundo romano. No período
medieval já traçamos a linha que assinala o desenvolvimento dessa
luta. Basta que a retomemos agora em Descartes, para vermos a continuidade no
mundo moderno. Mas o mais curioso é vermos como essa luta sugeriu, no
pensamento francês, tão afeito à síntese, a ideia
de uma religião racional, que teve também o seu lento desenvolvimento.
Sem procurarmos entrar em maiores indagações, acentuamos que Descartes
fundava o seu racionalismo na inspiração do Espírito da
Verdade. Aparente contradição, que mais tarde se esclarecerá.
Logo a seguir temos o caso de Espinosa, que estabelece ao mesmo tempo a forma
racional de uma interpretação panteísta do cosmos e lança
as bases, segundo Huby, "do mais radical racionalismo escriturístico".
Dessas tentativas, surgem muitas derivações e paralelismos, que
parecem desembocar na Convenção. Clootz propõe que o Deus
Único seja o povo, e a Deusa Razão, de Chaumettc, levará
na mão o cetro de Júpiter-Povo.
Fracassada a tentativa revolucionária, e retomadas as igrejas, não
tardará muito a aparecer a tentativa de Auguste Comte, de fundação
da Religião da Humanidade. Nessa linha milenar se insere o racionalismo
espírita, que surge com Kardec, em meados do século dezenove,
como síntese definitiva de um grande processo histórico. O Espiritismo
representa o triunfo decisivo da razão. Não sobre a fé,
com a qual se estabelece o equilíbrio, mas sobre o dogmatismo fideísta,
que em nome da última asfixiava a primeira.
J. HERCULANO PIRES