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- RUPTURAS DOS ARCABOUÇOS RELIGIOSOS |
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RUMO À RELIGIÃO -
Com a vitória da razão, ou seja, com o amadurecimento espiritual
do homem, a religião começa a avançar nos rumos de sua
completa libertação. O fermento racional do Cristianismo, que
levedara a massa da civilização medieval, leva à ruptura
inevitável os arcabouços religiosos forjados através dos
horizontes tribal, agrícola e civilizado. A partir do Renascimento, e
particularmente da Revolução Francesa, as estruturas asfixiantes
da "religião estática", definida por Bergson, serão
rompidas pelos impactos da "religião dinâmica". Esses
impactos são tanto mais irresistíveis e incontroláveis,
quando provêm do próprio interior dos arcabouços religiosos.
Quando analisamos o processo à luz dos próprios textos evangélicos,
apesar das deformações que sofreram através das cópias,
das traduções e das várias adaptações, compreendemos
que essa fase de libertação corresponde ao triunfo histórico
dos princípios cristãos. Lembrando a figura do Semeador, usada
por Jesus, podemos dizer que a semeadura racional do Cristo, vencendo a laboriosa
germinação medieval, brotou com toda a sua força a partir
do Renascimento. Daí por diante, a seara crescerá com rapidez
espantosa, lançará os pendões que rebentarão em
flores anunciadoras dos novos tempos, e começará a dar as suas
primeiras espigas. Étienne Gilson, historiador católico da filosofia
medieval, explica-nos, no capítulo final da sua obra clássica,
La Philosophie au Moyen Age: "Desde as origens patrísticas até
o fim do século XIV, a história do pensamento cristão é
a de um esforço incessantemente renovado para revelar o acordo entre
a razão natural e a fé, onde ele existe, e para realizá-lo,
onde ele não existe. Fé e razão, os dois temas com os quais
se construirá toda essa história, são propostos desde o
princípio e se reconhecem claramente ao longo da Idade Média,
em todos os filósofos que vão de Escoto Erigena a São Tomás."
E
Gilson conclui o capítulo com um período luminoso, em que afirma
a prioridade da França no episódio da vitória da razão,
acrescentando que a sua pátria "impregnou-se para sempre do sonho
messiânico de uma humanidade organizada e ligada pelos laços puramente
inteligíveis de uma mesma verdade". Esses laços inteligíveis,
que caracterizam o pensamento francês, não se referem, entretanto,
a qualquer forma de pensamento dogmático, fideísta. São
pelo contrário, a característica da era nova que se iniciou a
partir da ruptura dos arcabouços do dogmatismo religioso.
Não é por acaso que encontramos algumas significativas coincidências
históricas, como estas, por exemplo: a data de 10 de novembro de 1619,
que marca o momento da rebelião cartesiana contra o dogmatismo escolástico,
e a de 10 de novembro de 1793, em que a Razão é entronizada na
Catedral de Notre Dame; a proposta de Clootz, na Convenção, de
se adotar o Povo como Deus único, e a tentativa de Augusto Comte, no
século dezenove, de fundar a Religião da Humanidade; os sonhos
de Descartes, que o convenceram de estar inspirado pelo Espirito da Verdade,
e a manifestação desse mesmo Espirito a Kardec, incumbindo-o de
iniciar a construção daquela mesma "ciência admirável"
com que o filósofo sonhara em seu retiro de Ulma. A trama histórica,
como se vê, parece assinalada por repetições que se assemelham
ao pontilhar de uma agulha, buscando aqui e ali os ajustamentos necessários,
para firmar em definitivo a sua urdidura.
Aqueles princípios racionais que assinalamos no Cristianismo Primitivo,
na reação decisiva do ensino de Jesus contra o fideísmo
dogmático do Judaísmo, desenvolvem-se de maneira dialética
no processo histórico. De sua pureza revolucionária eles se precipitam
no compromisso com os interesses conservadores das formas estáticas da
religião. Mas o compromisso não é mais do que um "mal
necessário", o que vale dizer um mal aparente, uma vez que constitui
simples fase de transição para a libertação universal
do futuro. A religião humana caminha, embora penosamente, rumo à
religião divina ou espiritual. Jesus explicara que a semente do trigo
não renasce, se antes não morrer, não se desfizer na terra.
Ensinara também que um pouco de fermento faz levedar uma medida de farinha.
Todas essas referências indicam a segurança do semeador, que sabia
o que estava fazendo, ao lançar suas sementes no solo. O processo dialético
se revela na oposição entre os ensinos do Cristo e sua desfiguração
medieval, com a síntese consequente da "religião em espirito
e verdade", que virá mais tarde, em meados do século dezenove.
A ruptura dos arcabouços religiosos não se fará, porém,
de um momento para outro, nem ocasionará a derrocada imediata desses
arcabouços. Pelo contrário, será todo um complexo processo
histórico, ainda em desenvolvimento no nosso século. As rebeliões
do Renascimento, que marcarão uma espécie de revivescência
da época das heresias, aparecerão como gigantescas fendas abertas
na poderosa muralha da Igreja. De Lutero a Zwinglio, Calvino e Henrique VIII,
os processos da Reforma refletirá, no plano religioso, os poderosos anseios
de libertação já manifestados na arte, na ciência
e na filosofia.
Não importam os pretensos motivos circunstanciais desses movimentos.
Muitos desses motivos são falsamento alegados, mas ainda que fossem reais,
nada mais seriam do que os meios necessários ao pleno desenvolvimento
das forças da evolução espiritual. A verdade fundamental
está demasiado evidente no processo histórico, e tanto se confirma
no plano das investigações antropológicas, dos estudos
culturais, quanto da própria exegese bíblica e evangélica,
quando procedida sem as restrições do pensamento sectário.
O anúncio de Jesus à mulher samaritana, de que chegaria o tempo
em que os verdadeiros adoradores de Deus o adorariam "em espírito
e verdade", e a promessa do Consolador, constante do Evangelho de João
- simples sanções evangélicas às referências
do Velho Testamento a uma era espiritual - oferecem confirmação
escriturística à evidência histórica. A "religião
espiritual" é a meta que será fatalmente atingida pelo desenvolvimento
do Cristianismo, através do Espiritismo.
2. A LUTA CONTRA OS SÍMBOLOS - Aquilo a
que chamamos "arcabouços religiosos"
pode ser definido como a série de estruturas simbólicas que recobre
o sentimento religioso. Essas estruturas, como o madeiramento ou o esqueleto
metálico de uma construção, mantêm os edifícios
religiosos. E nenhum edifício parece mais bem estruturado, mais solidamente
sustentado por seus arcabouços, do que o da igreja medieval. Tanto a
estrutura doutrinária, constituída pela dogmática cristã,
quanto a estrutura litúrgica e a sacerdotal, representavam poderosos
arcabouços, que pareciam construídos de maneira a enfrentar os
séculos e os milênios. Mas foram precisamente esses arcabouços
que sofreram as primeiras rupturas, quando o impacto do Renascimento atingiu
a homogeneidade religiosa da Idade Média.
Os símbolos representam idéias, servem para transmiti-las, mas
por isso mesmo se colocam entre as idéias e o intelecto, e não
raro encobrem e asfixiam aquilo que deviam exprimir. Trata-se, evidentemente
de um processo dialético. Os símbolos são úteis
durante o tempo necessário para a transmissão da idéia,
mas tornam-se inúteis e perniciosos quando passam do tempo. No caso do
cristianismo medieval, essa deterioração da simbólica religiosa
era tanto mais inevitável, quanto os chamados símbolos-cristãos
haviam sido tomados de empréstimo às religiões anteriores,
superadas pelas idéias cristãs. Símbolos adaptados, que
representavam mal as idéias encobertas, uma vez esgotada a sua função
representativa, revelaram o seu indisfarçável vazio interior.
A Reforma pode ser considerada como uma luta contra os símbolos. Destituídos
de significação, os símbolos perduraram nas estruturas,
como perduram ainda hoje, mantidos pelo valor social econômico de que
se revestiram. À maneira dos mitos antigos, da civilização
greco-romana, que se mantiveram em uso muito tempo depois de haverem perdido
o seu conteúdo significativo, os símbolos medievais continuavam
dominando. A primeira grande figura a se levantar contra eles foi Erasmo de
Rotterdam. Vivendo no período de transição que caracterizou
a passagem do século XV para o XVI, Erasmo sentiu as transformações
profundas que abalavam a época, e graças à sua sensibilidade
e agudeza mental, pôde captar facilmente os reclamos da evolução
no campo religioso.
Curioso notar-se o sentido reformista da posição de Erasmo, dentro
da própria Igreja. Era um evolucionista, e não um revolucionário.
Pretendeu promover as transformações necessárias de maneira
pacífica, através da razão, abalando a dogmática
medieval pela simples força do raciocínio. Chegou mesmo a se declarar
disposto a sofrer por mais tempo a asfixia dos símbolos, para evitar
qualquer convulsão. Daí suas divergências com Lutero, que
representava precisamente o contrário da sua posição. Mas
não se pode tratar da Reforma sem uma referência a Erasmo, essa
figura estranha, que equivale, no campo da teologia, à figura de Descartes
na filosofia. Ambos dotados de enorme capacidade intelectual, de profunda cultura,
lutaram contra a simbólica medieval com prudente firmeza. Confiavam de
maneira inabalável no poder da razão.
Martinho Lutero vivia ainda na obscuridade, como um monge agostiniano, em Wittemberg,
quando Erasmo já exercia enorme influência em toda a Europa, na
luta contra o fideísmo dogmático. Em 1516, Erasmo teve conhecimento
da existência de Lutero, através de uma carta de Spalatinus. Já
nessa ocasião, o reformador alemão discordava de Erasmo, no tocante
ao dogma do pecado original. Essa discordância se acentuaria mais tarde
e se estenderia a outros pontos. Em 1517, quando Lutero afixou, na porta da
igreja de Winttemberg, as suas noventa e cinco teses, desencadeando a revolução
reformista, Erasmo assustou-se com a audácia e a violência do movimento
germânico. Alegrou-se com a ampliação da luta, mas ao mesmo
tempo encheu-se de temor, chegando mesmo a lamentar aquilo que considerava como
os exageros de Lutero.
Na verdade, a luta contra os símbolos não poderia processar-se
no plano do simples raciocínio, como desejava Erasmo. Era indispensável
à ação revolucionária. Porque os símbolos,
convertidos em formas de valor social e econômico, representavam interesses
em jogo, principalmente no perigoso campo da vida política. Lutero, temperamento
diverso de Erasmo, espirito prático, homem de ação, compreendeu
logo a natureza da batalha que devia travar. Repugnavam-lhe as hesitações
intelectuais de Erasmo, os temores sibilinos do humanista holandês. Lutero
compreendia, com extraordinária lucidez, que era necessário atacar
sem demora e sem receio as estruturas poderosas do dogmatismo medieval. Por
outro lado, as circunstâncias históricas o favoreciam, dando-lhe
como aliados os príncipes alemães, cujos interesses políticos
se voltavam contra o império romano do papado.
Vemos assim como o processo histórico se desenvolve, em meio de suas
próprias contradições, preparando o terreno para libertação
religiosa. Stephan Zweig, no seu belo livro sobre Erasmo, lembra uma feliz comparação
de Zwinglio, o reformador suíço, que vale a pena repetir. Erasmo
foi comparado a Ulisses, o prudente, que somente o acaso arrastara para a luta,
e que logo voltara para o seu mundo contemplativo, na ilha de ítaca.
Lutero, pelo contrario, era Ajax, o guerreiro que carregava a guerra no próprio
sangue. Apesar das diferenças, entretanto, cada qual desempenhou o seu
papel no drama histórico. A força serena do pensamento de Erasmo
abriu caminho, e construiu o clima de segurança indispensável
ao ímpeto revolucionário de Lutero.
Esses dois homens encarnaram a luta contra os símbolos. Erasmo atacou
serenamente, e seu pensamento se infiltrou de maneira dissolvente nos arcabouços
religiosos, minando-os pela base. Lutero desfechou os golpes decisivos, para
que a ruptura se verificasse. Depois, nas fendas abertas, surgiram os colaboradores
da grande obra reformista. Muitos deles não estavam, como Calvino, à
altura dos ideais libertadores. Mas nem por isso deixaram de contribuir vigorosamente
para a derrocada necessária. A liquidação dos hereges pela
violência, como acontecera anteriormente com os albigenses, os valdenses
e os hussistas, já não era mais possível. A autoridade
intelectual e moral de Erasmo, de um lado, e o apoio político dado a
Lutero, de outro lado, conjugados com as condições da época,
permitiam ao movimento da Reforma o seu pleno desenvolvimento.
Zweig lembra, no seu livro, um episódio que nos mostra a perfeita conjugação
de esforços entre Erasmo e Lutero, não obstante as divergências
que os separavam. Nas vésperas da reunião da Dieta em Worms, Frederico
da Saxônia, que protegia Lutero, mas tinha dúvidas quanto a legitimidade
de sua luta, interpelou Erasmo a respeito. O encontro do príncipe com
o humanista verificou-se em Colónia, a 5 de novembro de 1520. Erasmo
respondeu honestamente que "o mundo suspirava pelo verdadeiro Evangelho",
e que não se devia negar a Lutero o direito de defender as suas teses.
Nesse momento, como assinala Zweig, o destino de Lutero dependia da palavra
de Erasmo. E esta não lhe faltou. Os dois lutadores, que nem sequer chegaram
a se conhecer pessoalmente, e apesar de tão diversos quanto ao temperamento
e às posições assumidas, marcharam juntos na luta contra
os símbolos, forçados pelas contingências históricas.
Prepararam juntos o terreno, para o advento do Espiritismo.
3. FRAGMENTAÇÃO DA IGREJA - A partir
da rebelião luterana, os arcabouços religiosos medievais cederam
ao impacto do espírito renovador. A Igreja fragmentou-se. Rompidos os
arcabouços, o edifício gigantesco ameaçou ruir. Aquilo
que Erasmo temia, verificou-se de maneira inapelável. Durante séculos,
o mundo não gozaria mais da unidade religiosa, e consequentemente, da
"pax romana" da Idade Média. A timidez de Erasmo, os seus excessos
de prudência, não lhe haviam deixado perceber o sentido profundo
das próprias palavras evangélicas, atribuídas ao Cristo:
"Não julgueis que vim trazer paz à terra; não vim
trazer-lhe a paz, mas a espada". (Mateus, X: 34.) Ou ainda: "Eu vim
trazer fogo à Terra, e que mais quero, senão que ele se acenda?"(
Lucas, XII: 49).
A mesma espada que dividiu os judeus na era apostólica, a partir da pregação
do Cristo, o mesmo fogo que lavrou no seio do Judaísmo, devastando a
sua unidade apática, haviam também de dividir os cristãos
e calcinar o dogmatismo fideísta da nova estagnação religiosa.
A "religião estática" cederia lugar aos impulsos revitalizadores
da "religião dinâmica", desse "élan vital"
que teria de romper as estruturas materiais, para que a "religião
em espírito e verdade" pudesse triunfar dos formalismos dominantes.
Lutero sentia profundamente essa verdade, embora ainda não pudesse compreendê-la
em plenitude. Erasmo a compreendeu, mas não a sentiu com a intensidade
suficiente para impulsioná-lo à ação. Esse desajuste,
entretanto, era necessário ao desenvolvimento do processo histórico,
que não poderia prescindir das fases que caracterizam o desenrolar da
história.
A revolução luterana consolidou-se com o código de vinte
e oito artigos da Confissão de Augsburg, elaborado por Melanchton, e
expandiu-se rapidamente pela Alemanha e os países nórdicos, tornando-se
religião estatal. Lutero pretendia substituir os símbolos medievais
pela verdade evangélica, substituir o aparelhamento do culto pela presença
do Cristo. Era um impulso decisivo de volta às origens cristãs.
Mas as próprias circunstâncias apresentavam obstáculos diversos
a esse retorno ideal. O luteranismo não conseguiu abolir completamente
a simbólica religiosa do catolicismo-romano e terminou adaptando uma
parte da mesma. Conservou os três sacramentos que considerava fundamentais:
o batismo, a comunhão e a penitência, e manteve a organização
sacerdotal. Mas o mais curioso da Reforma foi à substituição
de uma idolatria por outra. Em lugar dos ídolos, das relíquias,
do instrumental variado do culto, do dogmatismo dos concílios e da autoridade
papal, o luteranismo consagrou a idolatria da letra, a infalibilidade dos textos
sagrados.
Paulo, o apóstolo, já havia ensinado que a letra mata e somente
o espírito vivifica. Mas também a liberdade subitamente conquistada
pode matar. Livrando-se do peso morto dos ídolos materiais que atravancam
a religião medieval, os reformadores da Renascença deviam apegar-se
forçosamente a alguma coisa. Essa nova base, sobre a qual deviam firmar-se
para prosseguir na luta, foi a "Palavra de Deus", consubstanciada
nos textos da Escritura. A Reforma estabeleceu o império do literalismo,
o domínio da letra. Jamais o Cristianismo europeu fizera tanto jus à
denominação da "religião do livro", que os maometanos
lhe haviam dado. Nos templos reformados, a Bíblia substituiu a imagem.
É fácil compreendermos que um grande passo estava dado, pois libertar
a letra era a medida indispensável para conseguir-se a libertação
do espírito, nela encerrado.
O "verdadeiro evangelho", de que Erasmo falara a Frederico da Saxônia,
surgiu sobre a Europa nas múltiplas traduções para as línguas
nacionais, a partir da germânica. Os textos ocultos, até então
privilégio dos clérigos eram retirados das criptas e oferecidos
ao povo, que os recebia com sofreguidão. A possibilidade de contato direto
com a Escritura, o direito de sentir o seu poder inspirador nos próprios
textos, sem as interpretações clericais, eis a novidade que abalava
o Cristianismo e abria perspectivas imprevisíveis para o seu desenvolvimento.
Foi essa a missão espiritual da Reforma. Sem o florescimento da seara
cristã, sem essa floração magnífica do Evangelho,
por toda parte, não poderiam chegar ao tempo dos frutos e da colheita,
que viria mais tarde, quando se cumprisse a Promessa do Consolador.
Na França e na Suíça, Zwinglio e Calvino se incumbiram
de dar prosseguimento à Reforma, que se estendeu rapidamente aos Países
Baixos e à Escócia. Calvino parece ter sentido ainda, mais fundamento
que Lutero, a necessidade de libertar o Cristianismo da asfixia dos símbolos.
Apegou-se, entretanto, ao dogma da predestinação, e seu fanatismo
atingiu às raias da brutalidade, com terríveis episódios
de violência. Não obstante, sua contribuição resultou
no vigoroso surto do liberalismo protestante, iluminado pela influência
do criticismo kantiano. Na Inglaterra, a libertação do domínio
papal, efetuada por Henrique VIII e consolidada pela rainha Elisabete, não
chegou a atingir a profundidade das reformas de Lutero e Calvino. A igreja Anglicana,
dominada pelo soberano nacional, conservou enorme acervo da herança medieval.
De qualquer maneira, a reforma estendeu-se por toda parte, deitou raízes
na América, e obrigou a Igreja a também se reformar, através
do Concílio de Trento, em suas três sessões sucessivas.
O movimento da Contra-Reforma apresentou duas faces contraditórias: uma
negativa, com a instituição do Santo Ofício, o estabelecimento
da Inquisição; outra positiva, com o trabalho educacional da Companhia
de Jesus. A primeira face correspondia à indignação do
fanatismo ferido; a Segunda, à compreensão da inteligência
eclesiástica, alertada pela prudência de Erasmo, de que novos tempos
haviam surgido e novas aspirações sacudiam vigorosamente os povos.
A impetuosidade de Lutero produzira os resultados necessários. O fogo
ateado pelo Cristo se reacendera nos corações, até então
amortalhados pela rotina secular. Uma nova terra e um novo céu começavam
a aparecer, segundo a previsão apocalíptica. E a partir do século
dezoito, o clima estava preparado para o segundo grande passo do Cristianismo,
que seria dado com a superação do literalismo; a libertação
do espírito. Caberia a Kardec, a serviço do Consolador, libertar
da letra que mata o espírito que vivifica.
4. RUPTURA DO ARCABOUÇO LITERAL - A posição
do Espiritismo, em face dos textos sagrados do Cristianismo, parece ambígua.
Ao mesmo tempo em que se apoia nos textos, a doutrina, a partir de Kardec, e
por seus mais autorizados divulgadores, também os critica. Nada mais
coerente com a natureza declaradamente racional do Espiritismo, com a sua orientação
analítica, e portanto científica. A ambiguidade apontada pelos
opositores não é mais do que o uso da liberdade de exame, sem
o qual o Espiritismo teria de submeter-se ao dogmatismo literalista, incapaz
de libertar, da prisão da letra, o espírito que vivifica. Admitir
o absolutismo das Escrituras seria frustrar a evolução do Cristianismo,
nos rumos da plena espiritualidade, que constitui ao mesmo tempo a sua essência
e o seu destino, o seu objetivo.
O Cristianismo Primitivo aprendera a libertar das escrituras judaicas o seu
conteúdo espiritual, como vemos nas epístolas apostólicas
e nos próprios textos evangélicos. Estes textos, por sua vez,
apresentam-se na forma livre de anotações, testemunhando a liberdade
espiritual do ensino do Cristo, que não se prendia a nenhum esquema literal
dotado de rigidez. Não obstante, o cristianismo medieval construiu um
rígido arcabouço literal, no qual prendeu e abafou, sob os demais
arcabouços da imensa construção da Igreja, a essência
dos ensinos cristãos, o seu livre espírito. A Reforma, rompendo
os arcabouços da superestrutura, não teve forças para romper
o da infra-estrutura, por entender que neste se encontrava a base do Cristianismo.
Romper o arcabouço literal seria como destruir os alicerces do edifício.
Era natural que assim acontecesse, pois os reformadores do Renascimento não
poderiam ir até as últimas consequências. Primeiro, porque
a sua ação estava naturalmente limitada pelas possibilidades da
época; e depois, porque ela se destinava a preparar condições
para o novo impulso a ser dado. Somente o reconhecimento das manifestações
espíritas, o estudo desses fenômenos e a aceitação
racional das comunicações esclarecedoras, dadas por via mediúnica,
poderiam levar ao rompimento do arcabouço literal, última forma
concreta em que o espírito cristão se refugiava. Podemos compreender
o apego dos literalistas à "Palavra de Deus", quando nos lembramos
dessa lei de inércia que nos amarra aos velhos hábitos. Melhor
ainda o compreendemos, ao pensar na sensação de insegurança
que devem ter sentido os reformistas, na proporção em que
demoliam os arcabouços do velho e poderoso edifício, no qual por
tantos séculos se abrigara a fé de seus antepassados e a deles
mesmos.
O Cristo ensinara, com absoluta clareza, segundo as anotações
evangélicas, que precisávamos perder a nossa vida, para encontrá-la.
"Porque o que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas o
que a perder por amor de mim, esse a salvará" (Lucas, IX,24.) Ou
ainda: "O que acha a sua vida, a perde; mas o que a perde por minha causa,
esse a acha."(Mateus, X, 39.) A lição individual se aplica
no plano coletivo. Os cristãos medievais se apegaram aquilo que consideravam
como a sua própria vida: os hábitos religiosos antigos, os formalismos
que pareciam dar-lhes segurança. Os cristãos reformistas se apegaram
aos textos. Mas para encontrar a vida, era necessário ainda um último
desapego, a libertação final, que devolveria ao Cristianismo a
sua essência desfigurada pelas amoldagens humanas. O Cristianismo tinha
também de ouvir a lição do Cristo: perder a sua vida formal
e literal, para encontrá-la em espírito e verdade.
Coube ao Consolador, como o próprio Cristo anunciara, a tarefa de produzir
esse rompimento final. "Em verdade vos digo - anunciou o Espírito
da Verdade - que são chegados os tempos em que todas as coisas devem
ser restabelecidas no seu exato sentido, para dissipar as trevas, confundir
os orgulhosos e glorificar os justos". Em O livro dos Espíritos
na resposta dada à pergunta 627, encontramos a mesma afirmação,
com maiores esclarecimentos. Não só os textos sagrados do Cristianismo,
mas todos os grandes textos sagrados e sistemas filosóficos, afirma o
Espírito, "encerram os germens de grandes verdades", que podem
ser libertados, "graças à chave que o Espiritismo fornece".
Na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, logo nas primeiras
linhas, Kardec oferece um exemplo da maneira pela qual o espiritismo "quebra
a noz para tirar a amêndoa", segundo uma sua expressão. O
respeito aos textos não se refere à forma, mas ao conteúdo.
O Espiritismo respeita a essência, os ensinos contidos na letra, o espírito
que nelas se incorpora, e não a própria letra.
Analisando os textos evangélicos, Kardec afirma: "a matéria
contida nos Evangelhos pode ser dividida em cinco partes:
1°-os atos ordinários da vida do Cristo;
2°-os milagres;
3°-as profecias;
4°-as palavras que serviram para o estabelecimento dos dogmas da Igreja;
5°-e o ensino moral.
As
quatro primeiras serviram para controvérsias, mas a última subsiste
inatacável". Logo mais, esclarece: "Essa parte constitui o
objeto exclusivo da presente obra". A noz foi quebrada e a amêndoa
retirada. O arcabouço literal foi rompido, para que o espirito se libertasse
da letra. Os próprios adeptos do Espiritismo, em geral, não percebem
a grandeza dessa atitude e lamentam que Kardec não fizesse um estudo
minucioso dos textos, analisando vírgula por vírgula. Outros,
achando que Kardec fez pouco, preferem embrenhar-se no cipoal de Os Quatro Evangelhos,
de Roustaing, aceitando as mais esdrúxulas interpretações
de passagens evangélicas. Tudo por quê? Simplesmente porque continuam
"apegados a sua vida", subjugados pela fascinação da
letra, em vez de se entregarem ao espírito dos ensinos, que Kardec libertou,
num trabalho inspirado e orientado pelas mais elevadas forças espirituais
que o nosso mundo já teve a oportunidade de conhecer.
As escrituras são encaradas pelo Espiritismo como elaborações
proféticas, ou seja, como produtos mediúnicos das chamadas épocas
de revelação. Nessas épocas, que assinalaram os momentos
decisivos, ou pelo menos importantes, da evolução humana, as figuras
proféticas de Hermes, de Moisés, de Buda, de Maomé, revelaram
aos homens alguns aspectos ocultos do processo da vida, ensinando-lhes princípios
de orientação espiritual. Todas as escrituras sagradas, por isso
mesmo, "encerram os germens de grandes verdades". Nos livros do Cristianismo,
que incluem os livros fundamentais do Judaísmo, esses germens aparecem
de maneira mais acessível a nós, por se dirigirem especialmente
ao nosso tempo, através do processo histórico da evolução
cristã.
É nesse sentido que o Espiritismo respeita as escrituras, e nelas se
apoia, para confirmar a sua própria legitimidade, mas a elas não
se escraviza. Pelo contrário, o Espiritismo recebe as escrituras como
um acervo cultural, do qual retira as energias criadoras, as forças vitais
condensadas em suas formas, para reelaborá-las em novas expressões
de espiritualidade. É assim que o Cristianismo se liberta e se renova,
na expansão de suas mais profundas e poderosas energias, para libertar
e renovar o mundo.
J. Herculano Pires