4 - RUPTURAS DOS ARCABOUÇOS RELIGIOSOS

l. RUMO À RELIGIÃO - Com a vitória da razão, ou seja, com o amadurecimento espiritual do homem, a religião começa a avançar nos rumos de sua completa libertação. O fermento racional do Cristianismo, que levedara a massa da civilização medieval, leva à ruptura inevitável os arcabouços religiosos forjados através dos horizontes tribal, agrícola e civilizado. A partir do Renascimento, e particularmente da Revolução Francesa, as estruturas asfixiantes da "religião estática", definida por Bergson, serão rompidas pelos impactos da "religião dinâmica". Esses impactos são tanto mais irresistíveis e incontroláveis, quando provêm do próprio interior dos arcabouços religiosos.

Quando analisamos o processo à luz dos próprios textos evangélicos, apesar das deformações que sofreram através das cópias, das traduções e das várias adaptações, compreendemos que essa fase de libertação corresponde ao triunfo histórico dos princípios cristãos. Lembrando a figura do Semeador, usada por Jesus, podemos dizer que a semeadura racional do Cristo, vencendo a laboriosa germinação medieval, brotou com toda a sua força a partir do Renascimento. Daí por diante, a seara crescerá com rapidez espantosa, lançará os pendões que rebentarão em flores anunciadoras dos novos tempos, e começará a dar as suas primeiras espigas. Étienne Gilson, historiador católico da filosofia medieval, explica-nos, no capítulo final da sua obra clássica, La Philosophie au Moyen Age: "Desde as origens patrísticas até o fim do século XIV, a história do pensamento cristão é a de um esforço incessantemente renovado para revelar o acordo entre a razão natural e a fé, onde ele existe, e para realizá-lo, onde ele não existe. Fé e razão, os dois temas com os quais se construirá toda essa história, são propostos desde o princípio e se reconhecem claramente ao longo da Idade Média, em todos os filósofos que vão de Escoto Erigena a São Tomás."

E Gilson conclui o capítulo com um período luminoso, em que afirma a prioridade da França no episódio da vitória da razão, acrescentando que a sua pátria "impregnou-se para sempre do sonho messiânico de uma humanidade organizada e ligada pelos laços puramente inteligíveis de uma mesma verdade". Esses laços inteligíveis, que caracterizam o pensamento francês, não se referem, entretanto, a qualquer forma de pensamento dogmático, fideísta. São pelo contrário, a característica da era nova que se iniciou a partir da ruptura dos arcabouços do dogmatismo religioso.

Não é por acaso que encontramos algumas significativas coincidências históricas, como estas, por exemplo: a data de 10 de novembro de 1619, que marca o momento da rebelião cartesiana contra o dogmatismo escolástico, e a de 10 de novembro de 1793, em que a Razão é entronizada na Catedral de Notre Dame; a proposta de Clootz, na Convenção, de se adotar o Povo como Deus único, e a tentativa de Augusto Comte, no século dezenove, de fundar a Religião da Humanidade; os sonhos de Descartes, que o convenceram de estar inspirado pelo Espirito da Verdade, e a manifestação desse mesmo Espirito a Kardec, incumbindo-o de iniciar a construção daquela mesma "ciência admirável" com que o filósofo sonhara em seu retiro de Ulma. A trama histórica, como se vê, parece assinalada por repetições que se assemelham ao pontilhar de uma agulha, buscando aqui e ali os ajustamentos necessários, para firmar em definitivo a sua urdidura.

Aqueles princípios racionais que assinalamos no Cristianismo Primitivo, na reação decisiva do ensino de Jesus contra o fideísmo dogmático do Judaísmo, desenvolvem-se de maneira dialética no processo histórico. De sua pureza revolucionária eles se precipitam no compromisso com os interesses conservadores das formas estáticas da religião. Mas o compromisso não é mais do que um "mal necessário", o que vale dizer um mal aparente, uma vez que constitui simples fase de transição para a libertação universal do futuro. A religião humana caminha, embora penosamente, rumo à religião divina ou espiritual. Jesus explicara que a semente do trigo não renasce, se antes não morrer, não se desfizer na terra. Ensinara também que um pouco de fermento faz levedar uma medida de farinha. Todas essas referências indicam a segurança do semeador, que sabia o que estava fazendo, ao lançar suas sementes no solo. O processo dialético se revela na oposição entre os ensinos do Cristo e sua desfiguração medieval, com a síntese consequente da "religião em espirito e verdade", que virá mais tarde, em meados do século dezenove.

A ruptura dos arcabouços religiosos não se fará, porém, de um momento para outro, nem ocasionará a derrocada imediata desses arcabouços. Pelo contrário, será todo um complexo processo histórico, ainda em desenvolvimento no nosso século. As rebeliões do Renascimento, que marcarão uma espécie de revivescência da época das heresias, aparecerão como gigantescas fendas abertas na poderosa muralha da Igreja. De Lutero a Zwinglio, Calvino e Henrique VIII, os processos da Reforma refletirá, no plano religioso, os poderosos anseios de libertação já manifestados na arte, na ciência e na filosofia.

Não importam os pretensos motivos circunstanciais desses movimentos. Muitos desses motivos são falsamento alegados, mas ainda que fossem reais, nada mais seriam do que os meios necessários ao pleno desenvolvimento das forças da evolução espiritual. A verdade fundamental está demasiado evidente no processo histórico, e tanto se confirma no plano das investigações antropológicas, dos estudos culturais, quanto da própria exegese bíblica e evangélica, quando procedida sem as restrições do pensamento sectário. O anúncio de Jesus à mulher samaritana, de que chegaria o tempo em que os verdadeiros adoradores de Deus o adorariam "em espírito e verdade", e a promessa do Consolador, constante do Evangelho de João - simples sanções evangélicas às referências do Velho Testamento a uma era espiritual - oferecem confirmação escriturística à evidência histórica. A "religião espiritual" é a meta que será fatalmente atingida pelo desenvolvimento do Cristianismo, através do Espiritismo.

2. A LUTA CONTRA OS SÍMBOLOS - Aquilo a que chamamos "arcabouços religiosos" pode ser definido como a série de estruturas simbólicas que recobre o sentimento religioso. Essas estruturas, como o madeiramento ou o esqueleto metálico de uma construção, mantêm os edifícios religiosos. E nenhum edifício parece mais bem estruturado, mais solidamente sustentado por seus arcabouços, do que o da igreja medieval. Tanto a estrutura doutrinária, constituída pela dogmática cristã, quanto a estrutura litúrgica e a sacerdotal, representavam poderosos arcabouços, que pareciam construídos de maneira a enfrentar os séculos e os milênios. Mas foram precisamente esses arcabouços que sofreram as primeiras rupturas, quando o impacto do Renascimento atingiu a homogeneidade religiosa da Idade Média.

Os símbolos representam idéias, servem para transmiti-las, mas por isso mesmo se colocam entre as idéias e o intelecto, e não raro encobrem e asfixiam aquilo que deviam exprimir. Trata-se, evidentemente de um processo dialético. Os símbolos são úteis durante o tempo necessário para a transmissão da idéia, mas tornam-se inúteis e perniciosos quando passam do tempo. No caso do cristianismo medieval, essa deterioração da simbólica religiosa era tanto mais inevitável, quanto os chamados símbolos-cristãos haviam sido tomados de empréstimo às religiões anteriores, superadas pelas idéias cristãs. Símbolos adaptados, que representavam mal as idéias encobertas, uma vez esgotada a sua função representativa, revelaram o seu indisfarçável vazio interior.

A Reforma pode ser considerada como uma luta contra os símbolos. Destituídos de significação, os símbolos perduraram nas estruturas, como perduram ainda hoje, mantidos pelo valor social econômico de que se revestiram. À maneira dos mitos antigos, da civilização greco-romana, que se mantiveram em uso muito tempo depois de haverem perdido o seu conteúdo significativo, os símbolos medievais continuavam dominando. A primeira grande figura a se levantar contra eles foi Erasmo de Rotterdam. Vivendo no período de transição que caracterizou a passagem do século XV para o XVI, Erasmo sentiu as transformações profundas que abalavam a época, e graças à sua sensibilidade e agudeza mental, pôde captar facilmente os reclamos da evolução no campo religioso.

Curioso notar-se o sentido reformista da posição de Erasmo, dentro da própria Igreja. Era um evolucionista, e não um revolucionário. Pretendeu promover as transformações necessárias de maneira pacífica, através da razão, abalando a dogmática medieval pela simples força do raciocínio. Chegou mesmo a se declarar disposto a sofrer por mais tempo a asfixia dos símbolos, para evitar qualquer convulsão. Daí suas divergências com Lutero, que representava precisamente o contrário da sua posição. Mas não se pode tratar da Reforma sem uma referência a Erasmo, essa figura estranha, que equivale, no campo da teologia, à figura de Descartes na filosofia. Ambos dotados de enorme capacidade intelectual, de profunda cultura, lutaram contra a simbólica medieval com prudente firmeza. Confiavam de maneira inabalável no poder da razão.

Martinho Lutero vivia ainda na obscuridade, como um monge agostiniano, em Wittemberg, quando Erasmo já exercia enorme influência em toda a Europa, na luta contra o fideísmo dogmático. Em 1516, Erasmo teve conhecimento da existência de Lutero, através de uma carta de Spalatinus. Já nessa ocasião, o reformador alemão discordava de Erasmo, no tocante ao dogma do pecado original. Essa discordância se acentuaria mais tarde e se estenderia a outros pontos. Em 1517, quando Lutero afixou, na porta da igreja de Winttemberg, as suas noventa e cinco teses, desencadeando a revolução reformista, Erasmo assustou-se com a audácia e a violência do movimento germânico. Alegrou-se com a ampliação da luta, mas ao mesmo tempo encheu-se de temor, chegando mesmo a lamentar aquilo que considerava como os exageros de Lutero.

Na verdade, a luta contra os símbolos não poderia processar-se no plano do simples raciocínio, como desejava Erasmo. Era indispensável à ação revolucionária. Porque os símbolos, convertidos em formas de valor social e econômico, representavam interesses em jogo, principalmente no perigoso campo da vida política. Lutero, temperamento diverso de Erasmo, espirito prático, homem de ação, compreendeu logo a natureza da batalha que devia travar. Repugnavam-lhe as hesitações intelectuais de Erasmo, os temores sibilinos do humanista holandês. Lutero compreendia, com extraordinária lucidez, que era necessário atacar sem demora e sem receio as estruturas poderosas do dogmatismo medieval. Por outro lado, as circunstâncias históricas o favoreciam, dando-lhe como aliados os príncipes alemães, cujos interesses políticos se voltavam contra o império romano do papado.

Vemos assim como o processo histórico se desenvolve, em meio de suas próprias contradições, preparando o terreno para libertação religiosa. Stephan Zweig, no seu belo livro sobre Erasmo, lembra uma feliz comparação de Zwinglio, o reformador suíço, que vale a pena repetir. Erasmo foi comparado a Ulisses, o prudente, que somente o acaso arrastara para a luta, e que logo voltara para o seu mundo contemplativo, na ilha de ítaca. Lutero, pelo contrario, era Ajax, o guerreiro que carregava a guerra no próprio sangue. Apesar das diferenças, entretanto, cada qual desempenhou o seu papel no drama histórico. A força serena do pensamento de Erasmo abriu caminho, e construiu o clima de segurança indispensável ao ímpeto revolucionário de Lutero.

Esses dois homens encarnaram a luta contra os símbolos. Erasmo atacou serenamente, e seu pensamento se infiltrou de maneira dissolvente nos arcabouços religiosos, minando-os pela base. Lutero desfechou os golpes decisivos, para que a ruptura se verificasse. Depois, nas fendas abertas, surgiram os colaboradores da grande obra reformista. Muitos deles não estavam, como Calvino, à altura dos ideais libertadores. Mas nem por isso deixaram de contribuir vigorosamente para a derrocada necessária. A liquidação dos hereges pela violência, como acontecera anteriormente com os albigenses, os valdenses e os hussistas, já não era mais possível. A autoridade intelectual e moral de Erasmo, de um lado, e o apoio político dado a Lutero, de outro lado, conjugados com as condições da época, permitiam ao movimento da Reforma o seu pleno desenvolvimento.

Zweig lembra, no seu livro, um episódio que nos mostra a perfeita conjugação de esforços entre Erasmo e Lutero, não obstante as divergências que os separavam. Nas vésperas da reunião da Dieta em Worms, Frederico da Saxônia, que protegia Lutero, mas tinha dúvidas quanto a legitimidade de sua luta, interpelou Erasmo a respeito. O encontro do príncipe com o humanista verificou-se em Colónia, a 5 de novembro de 1520. Erasmo respondeu honestamente que "o mundo suspirava pelo verdadeiro Evangelho", e que não se devia negar a Lutero o direito de defender as suas teses.

Nesse momento, como assinala Zweig, o destino de Lutero dependia da palavra de Erasmo. E esta não lhe faltou. Os dois lutadores, que nem sequer chegaram a se conhecer pessoalmente, e apesar de tão diversos quanto ao temperamento e às posições assumidas, marcharam juntos na luta contra os símbolos, forçados pelas contingências históricas. Prepararam juntos o terreno, para o advento do Espiritismo.

3. FRAGMENTAÇÃO DA IGREJA - A partir da rebelião luterana, os arcabouços religiosos medievais cederam ao impacto do espírito renovador. A Igreja fragmentou-se. Rompidos os arcabouços, o edifício gigantesco ameaçou ruir. Aquilo que Erasmo temia, verificou-se de maneira inapelável. Durante séculos, o mundo não gozaria mais da unidade religiosa, e consequentemente, da "pax romana" da Idade Média. A timidez de Erasmo, os seus excessos de prudência, não lhe haviam deixado perceber o sentido profundo das próprias palavras evangélicas, atribuídas ao Cristo: "Não julgueis que vim trazer paz à terra; não vim trazer-lhe a paz, mas a espada". (Mateus, X: 34.) Ou ainda: "Eu vim trazer fogo à Terra, e que mais quero, senão que ele se acenda?"( Lucas, XII: 49).

A mesma espada que dividiu os judeus na era apostólica, a partir da pregação do Cristo, o mesmo fogo que lavrou no seio do Judaísmo, devastando a sua unidade apática, haviam também de dividir os cristãos e calcinar o dogmatismo fideísta da nova estagnação religiosa. A "religião estática" cederia lugar aos impulsos revitalizadores da "religião dinâmica", desse "élan vital" que teria de romper as estruturas materiais, para que a "religião em espírito e verdade" pudesse triunfar dos formalismos dominantes. Lutero sentia profundamente essa verdade, embora ainda não pudesse compreendê-la em plenitude. Erasmo a compreendeu, mas não a sentiu com a intensidade suficiente para impulsioná-lo à ação. Esse desajuste, entretanto, era necessário ao desenvolvimento do processo histórico, que não poderia prescindir das fases que caracterizam o desenrolar da história.

A revolução luterana consolidou-se com o código de vinte e oito artigos da Confissão de Augsburg, elaborado por Melanchton, e expandiu-se rapidamente pela Alemanha e os países nórdicos, tornando-se religião estatal. Lutero pretendia substituir os símbolos medievais pela verdade evangélica, substituir o aparelhamento do culto pela presença do Cristo. Era um impulso decisivo de volta às origens cristãs. Mas as próprias circunstâncias apresentavam obstáculos diversos a esse retorno ideal. O luteranismo não conseguiu abolir completamente a simbólica religiosa do catolicismo-romano e terminou adaptando uma parte da mesma. Conservou os três sacramentos que considerava fundamentais: o batismo, a comunhão e a penitência, e manteve a organização sacerdotal. Mas o mais curioso da Reforma foi à substituição de uma idolatria por outra. Em lugar dos ídolos, das relíquias, do instrumental variado do culto, do dogmatismo dos concílios e da autoridade papal, o luteranismo consagrou a idolatria da letra, a infalibilidade dos textos sagrados.

Paulo, o apóstolo, já havia ensinado que a letra mata e somente o espírito vivifica. Mas também a liberdade subitamente conquistada pode matar. Livrando-se do peso morto dos ídolos materiais que atravancam a religião medieval, os reformadores da Renascença deviam apegar-se forçosamente a alguma coisa. Essa nova base, sobre a qual deviam firmar-se para prosseguir na luta, foi a "Palavra de Deus", consubstanciada nos textos da Escritura. A Reforma estabeleceu o império do literalismo, o domínio da letra. Jamais o Cristianismo europeu fizera tanto jus à denominação da "religião do livro", que os maometanos lhe haviam dado. Nos templos reformados, a Bíblia substituiu a imagem. É fácil compreendermos que um grande passo estava dado, pois libertar a letra era a medida indispensável para conseguir-se a libertação do espírito, nela encerrado.

O "verdadeiro evangelho", de que Erasmo falara a Frederico da Saxônia, surgiu sobre a Europa nas múltiplas traduções para as línguas nacionais, a partir da germânica. Os textos ocultos, até então privilégio dos clérigos eram retirados das criptas e oferecidos ao povo, que os recebia com sofreguidão. A possibilidade de contato direto com a Escritura, o direito de sentir o seu poder inspirador nos próprios textos, sem as interpretações clericais, eis a novidade que abalava o Cristianismo e abria perspectivas imprevisíveis para o seu desenvolvimento. Foi essa a missão espiritual da Reforma. Sem o florescimento da seara cristã, sem essa floração magnífica do Evangelho, por toda parte, não poderiam chegar ao tempo dos frutos e da colheita, que viria mais tarde, quando se cumprisse a Promessa do Consolador.

Na França e na Suíça, Zwinglio e Calvino se incumbiram de dar prosseguimento à Reforma, que se estendeu rapidamente aos Países Baixos e à Escócia. Calvino parece ter sentido ainda, mais fundamento que Lutero, a necessidade de libertar o Cristianismo da asfixia dos símbolos. Apegou-se, entretanto, ao dogma da predestinação, e seu fanatismo atingiu às raias da brutalidade, com terríveis episódios de violência. Não obstante, sua contribuição resultou no vigoroso surto do liberalismo protestante, iluminado pela influência do criticismo kantiano. Na Inglaterra, a libertação do domínio papal, efetuada por Henrique VIII e consolidada pela rainha Elisabete, não chegou a atingir a profundidade das reformas de Lutero e Calvino. A igreja Anglicana, dominada pelo soberano nacional, conservou enorme acervo da herança medieval.

De qualquer maneira, a reforma estendeu-se por toda parte, deitou raízes na América, e obrigou a Igreja a também se reformar, através do Concílio de Trento, em suas três sessões sucessivas. O movimento da Contra-Reforma apresentou duas faces contraditórias: uma negativa, com a instituição do Santo Ofício, o estabelecimento da Inquisição; outra positiva, com o trabalho educacional da Companhia de Jesus. A primeira face correspondia à indignação do fanatismo ferido; a Segunda, à compreensão da inteligência eclesiástica, alertada pela prudência de Erasmo, de que novos tempos haviam surgido e novas aspirações sacudiam vigorosamente os povos. A impetuosidade de Lutero produzira os resultados necessários. O fogo ateado pelo Cristo se reacendera nos corações, até então amortalhados pela rotina secular. Uma nova terra e um novo céu começavam a aparecer, segundo a previsão apocalíptica. E a partir do século dezoito, o clima estava preparado para o segundo grande passo do Cristianismo, que seria dado com a superação do literalismo; a libertação do espírito. Caberia a Kardec, a serviço do Consolador, libertar da letra que mata o espírito que vivifica.

4. RUPTURA DO ARCABOUÇO LITERAL - A posição do Espiritismo, em face dos textos sagrados do Cristianismo, parece ambígua. Ao mesmo tempo em que se apoia nos textos, a doutrina, a partir de Kardec, e por seus mais autorizados divulgadores, também os critica. Nada mais coerente com a natureza declaradamente racional do Espiritismo, com a sua orientação analítica, e portanto científica. A ambiguidade apontada pelos opositores não é mais do que o uso da liberdade de exame, sem o qual o Espiritismo teria de submeter-se ao dogmatismo literalista, incapaz de libertar, da prisão da letra, o espírito que vivifica. Admitir o absolutismo das Escrituras seria frustrar a evolução do Cristianismo, nos rumos da plena espiritualidade, que constitui ao mesmo tempo a sua essência e o seu destino, o seu objetivo.

O Cristianismo Primitivo aprendera a libertar das escrituras judaicas o seu conteúdo espiritual, como vemos nas epístolas apostólicas e nos próprios textos evangélicos. Estes textos, por sua vez, apresentam-se na forma livre de anotações, testemunhando a liberdade espiritual do ensino do Cristo, que não se prendia a nenhum esquema literal dotado de rigidez. Não obstante, o cristianismo medieval construiu um rígido arcabouço literal, no qual prendeu e abafou, sob os demais arcabouços da imensa construção da Igreja, a essência dos ensinos cristãos, o seu livre espírito. A Reforma, rompendo os arcabouços da superestrutura, não teve forças para romper o da infra-estrutura, por entender que neste se encontrava a base do Cristianismo. Romper o arcabouço literal seria como destruir os alicerces do edifício.

Era natural que assim acontecesse, pois os reformadores do Renascimento não poderiam ir até as últimas consequências. Primeiro, porque a sua ação estava naturalmente limitada pelas possibilidades da época; e depois, porque ela se destinava a preparar condições para o novo impulso a ser dado. Somente o reconhecimento das manifestações espíritas, o estudo desses fenômenos e a aceitação racional das comunicações esclarecedoras, dadas por via mediúnica, poderiam levar ao rompimento do arcabouço literal, última forma concreta em que o espírito cristão se refugiava. Podemos compreender o apego dos literalistas à "Palavra de Deus", quando nos lembramos dessa lei de inércia que nos amarra aos velhos hábitos. Melhor ainda o compreendemos, ao pensar na sensação de insegurança que de­vem ter sentido os reformistas, na proporção em que demoliam os arcabouços do velho e poderoso edifício, no qual por tantos séculos se abrigara a fé de seus antepassados e a deles mesmos.

O Cristo ensinara, com absoluta clareza, segundo as anotações evangélicas, que precisávamos perder a nossa vida, para encontrá-la. "Porque o que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas o que a perder por amor de mim, esse a salvará" (Lucas, IX,24.) Ou ainda: "O que acha a sua vida, a perde; mas o que a perde por minha causa, esse a acha."(Mateus, X, 39.) A lição individual se aplica no plano coletivo. Os cristãos medievais se apegaram aquilo que consideravam como a sua própria vida: os hábitos religiosos antigos, os formalismos que pareciam dar-lhes segurança. Os cristãos reformistas se apegaram aos textos. Mas para encontrar a vida, era necessário ainda um último desapego, a libertação final, que devolveria ao Cristianismo a sua essência desfigurada pelas amoldagens humanas. O Cristianismo tinha também de ouvir a lição do Cristo: perder a sua vida formal e literal, para encontrá-la em espírito e verdade.

Coube ao Consolador, como o próprio Cristo anunciara, a tarefa de produzir esse rompimento final. "Em verdade vos digo - anunciou o Espírito da Verdade - que são chegados os tempos em que todas as coisas devem ser restabelecidas no seu exato sentido, para dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos". Em O livro dos Espíritos na resposta dada à pergunta 627, encontramos a mesma afirmação, com maiores esclarecimentos. Não só os textos sagrados do Cristianismo, mas todos os grandes textos sagrados e sistemas filosóficos, afirma o Espírito, "encerram os germens de grandes verdades", que podem ser libertados, "graças à chave que o Espiritismo fornece". Na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, logo nas primeiras linhas, Kardec oferece um exemplo da maneira pela qual o espiritismo "quebra a noz para tirar a amêndoa", segundo uma sua expressão. O respeito aos textos não se refere à forma, mas ao conteúdo. O Espiritismo respeita a essência, os ensinos contidos na letra, o espírito que nelas se incorpora, e não a própria letra.

Analisando os textos evangélicos, Kardec afirma: "a matéria contida nos Evangelhos pode ser dividida em cinco partes:

1°-os atos ordinários da vida do Cristo;
2°-os milagres;
3°-as profecias;
4°-as palavras que serviram para o estabelecimento dos dogmas da Igreja;
5°-e o ensino moral.

As quatro primeiras serviram para controvérsias, mas a última subsiste inatacável". Logo mais, esclarece: "Essa parte constitui o objeto exclusivo da presente obra". A noz foi quebrada e a amêndoa retirada. O arcabouço literal foi rompido, para que o espirito se libertasse da letra. Os próprios adeptos do Espiritismo, em geral, não percebem a grandeza dessa atitude e lamentam que Kardec não fizesse um estudo minucioso dos textos, analisando vírgula por vírgula. Outros, achando que Kardec fez pouco, preferem embrenhar-se no cipoal de Os Quatro Evangelhos, de Roustaing, aceitando as mais esdrúxulas interpretações de passagens evangélicas. Tudo por quê? Simplesmente porque continuam "apegados a sua vida", subjugados pela fascinação da letra, em vez de se entregarem ao espírito dos ensinos, que Kardec libertou, num trabalho inspirado e orientado pelas mais elevadas forças espirituais que o nosso mundo já teve a oportunidade de conhecer.

As escrituras são encaradas pelo Espiritismo como elaborações proféticas, ou seja, como produtos mediúnicos das chamadas épocas de revelação. Nessas épocas, que assinalaram os momentos decisivos, ou pelo menos importantes, da evolução humana, as figuras proféticas de Hermes, de Moisés, de Buda, de Maomé, revelaram aos homens alguns aspectos ocultos do processo da vida, ensinando-lhes princípios de orientação espiritual. Todas as escrituras sagradas, por isso mesmo, "encerram os germens de grandes verdades". Nos livros do Cristianismo, que incluem os livros fundamentais do Judaísmo, esses germens aparecem de maneira mais acessível a nós, por se dirigirem especialmente ao nosso tempo, através do processo histórico da evolução cristã.

É nesse sentido que o Espiritismo respeita as escrituras, e nelas se apoia, para confirmar a sua própria legitimidade, mas a elas não se escraviza. Pelo contrário, o Espiritismo recebe as escrituras como um acervo cultural, do qual retira as energias criadoras, as forças vitais condensadas em suas formas, para reelaborá-las em novas expressões de espiritualidade. É assim que o Cristianismo se liberta e se renova, na expansão de suas mais profundas e poderosas energias, para libertar e renovar o mundo.

J. Herculano Pires