CAPÍTULO IV
DO AMOR MUNDANO AO AMOR DIVINO

Por isso te digo que os seus muitos pecados lhe são perdoados, pois muito amou. Lucas, 7:47.
Maria Madalena e Maria, mãe de José, viram onde o puseram.
Passado o sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram aromas para
irem ungir o corpo de Jesus.
Muito cedo, no primeiro dia da semana, logo depois do nascer do sol, foram ao sepulcro.
Diziam umas às outras: Quem removerá a pedra da entrada do sepulcro?

Mas, olhando, viram que a pedra, que era muito grande, já estava revolvida. ( ... )
Tremendo e assombradas, as mulheres saíram, e fugiram do sepulcro. Nada disseram a ninguém, porque temiam. Tendo Jesus ressurgido no primeiro dia da semana, apareceu primeiro a Maria Madalena, da qual tinha expulsado sete demônios. Partindo ela, anunciou-o àqueles que tinham estado com ele, os quais estavam tristes, e choravam. Quando ouviram que Jesus vivia, e que tinha sido visto por ela, não acreditaram. Mateus, 15:47; 16:1-4, 8-11.

Era tarde. A luz do sol cedia lugar às sombras que se avizinhavam, formando o pano de fundo para o brilho diamantino das estrelas.

Longe, o palacete de Magdala preparava-se para mais uma noite em que o reinado do prazer e da sensualidade substituiria a paz das consciências. Era também a noite dos sentimentos em que o manto negro das paixões desgovernadas cobria as manifestações do amor verdadeiro que há dentro de todos os seres humanos .

Maria, a anfitriã da festa dos desejos, envolta em sua indumentária da mais pura seda, em cores que iam do púrpura ao escarlate, ainda adormecia em seu tálamo, aguardando a hora em que seus convidados adentrassem os umbrais do palácio. Aguardava a hora da festa de orgias, quando pretendia embriagar seus sentidos, deixando-se nos braços dos homens de então.

Todos os grandes e importantes daquela geração procuravam com assiduidade a diversão do palacete de Magdala. Como nenhuma outra estância naquela região, a casa de Maria reunia o luxo, o requinte, a luxúria; de maneira singular, a perdição repentinamente revestia-se de um sabor picante, e um colorido especial fazia brilhar as festas com quantas moedas de ouro fossem necessárias. Aguçavam-se os sentidos, e embriagavam-se aqueles homens à procura da ilusão. Buscavam o amor mascarado de prazer.

Toda busca reflete os anseios da alma humana. Toda procura pelo prazer reflete o descontentamento consigo mesmo, pois é uma busca sobretudo pela felicidade. Não importam os meios, por mais equivocados que sejam. O homem busca sempre a felicidade, ainda que seja à semelhança do verme, que, rastejando nas entranhas do solo, sonha com as manifestações da luz.

Sucumbir ao prazer que embriaga temporariamente os sentidos representa a ânsia por algo indefinível que proporcione felicidade. É o homem em busca de Deus, da paz e do amor verdadeiro. Porém, durante a noite da alma e seu delírio, em que sucede parte de tal busca irremediável, o ser experimenta as tortuosidades do caminho, até que encontre as estradas de Deus.

Maria de Magdala, adormecida em seu leito de prazeres, presa de sua própria noite consciencial, sonhava. Eis que ao longe, nas cercanias da Judéia, às margens do Jordão, entre as belezas da natureza que eram nimbadas de luz solar, alguém se movia com graciosidade. Com seu sonho de mulher, procurou visualizar um homem diferente daqueles que lhe procuravam o corpo para beber do prazer enganoso. Mas a figura masculina do seu sonho esgueirava-se por entre as árvores e jardins; avistava-se somente uma sombra, um vulto que deixava após si um rastro de estranha luminosidade, empalidecendo os reflexos do sol nas ramagens das árvores ou nas pétalas das flores. O sonho prosseguia, e, em determinado momento, Maria caiu em si. Deu-se conta de que era aquilo que esperava em seus anseios e noites mal-dormidas, acompanhadas da angústia que povoava sua cama vazia após a saciedade de todos. Descobrira enfim: aquele era o fruto de seus clamores, era o fim de seus desejos.

Aquele homem mágico virou-se então para ela. Sua expressão era suave como a viração do dia, e seu olhar era como as estrelas, quais esferas diamantinas a brilhar na escuridão - a escuridão da alma humana. A suavidade de seu olhar conquistou o coração de Maria, e, desde então, aquele amor não amado e não consumado que sentia por aquele homem desconhecido passou a povoar as noites e os sonhos da senhora de Magdala.

Acordando do torpor dos sentidos, Maria chamou as serviçais, ordenando que cessassem imediatamente os preparativos e dispensassem os convidados da noite. Angústia indefinível agora dominava sua alma inquieta. Não pôde mais esquecer aquele olhar pelo qual se apaixonara perdidamente. Não era paixão parecida com aquela que sentia pelos amantes mais corteses que a procuravam. Mas também aquele ser nimbado de luz não se assemelhava em nada aos homens que lhe devoravam os lençóis. Ele era definitivamente diferente e inspirava-lhe algo inusitado, que não saberia pôr em palavras.

Sem compreensão clara acerca da decisão da senhora, as serviçais cumpriram suas ordens e dispensaram os convidados, que a esta hora já se aproximavam do palacete de Magdala. Com o transcorrer do tempo e a ausência do fausto e das festanças costumeiras, inquietaram-se as criadas, a imaginar o que se passava com sua senhora. Não mais saía de seus aposentos; permanecia soturna e cabisbaixa, imersa em seus próprios pensamentos. Palavra não articulavam seus lábios; dia após dia encontrava-se triste e angustiada. Talvez saudosa - quem sabe? Por certo já não tinha a alegria e o viço de outrora.

Muitas vezes o anseio do ser humano pelas coisas mundanas e materiais leva-o à saciedade, quando experimenta a visão epicurista do mundo. Contudo, ao deparar com algo que transcende os seus sentidos e as suas experiências de homem comum, isso o incomoda de tal maneira que alguma coisa passa a mover-se em seu interior. É o gérmen da consciência espiritual que, ante o choque das vibrações, ameaça despertar, tal qual a semente, que, lançada no seio da terra, ameaça romper-se no momento propício, dando início ao desenvolvimento da minúscula planta que mais tarde se transformará em frondoso carvalho. É o lírio que rompe pouco a pouco o claustro dos pântanos e projeta-se em direção ao sol, perfumando a vida.

Maria recolhera-se a si mesma, em profunda meditação. Não mais encontrava satisfação nos prazeres da libido ou em companhia dos homens que negociavam o seu corpo feito sal ou ungüento precioso. De repente, sentia-se deslocada, com repugnância por aquela vida à qual já não mais pertencia. Ansiava por aquele outro homem. Alimentava a esperança de que, de alguma forma não mais misteriosa do que o modo pelo qual invadiu e transformou seu coração, aquele homem viesse a ela. Necessitava de um outro amor, que rasgasse o véu negro de sua vida oca e de suas noites vazias, que tecesse o manto de um novo dia e que mostrasse a ela a beleza perdida de viver.

Certo dia, debruçada sobre o peitoral da janela de seu palacete, ouviu duas aias conversarem com um estranho ancião, que estava de passagem. Falavam de algo ou alguém. Tentavam falar baixo, mas Maria, após alguns instantes de concentração, conseguiu ouvi-los com alguma nitidez. Diziam a respeito de certo jovem que passava pelas cercanias de Cafarnaum e por Tiberíades, na Galiléia. Era alguém especial, um homem diferente, afirmava o viajante. Referiam-se a ele de tal maneira que despertaram a atenção da senhora de Magdala. Algo moveu-se em seu interior. O coração batia forte ao ouvir falar do estranho galileu. Era como se soasse em si o sino da vida, que precisava prosseguir. Pegou-se a contemplar duas solitárias lágrimas que escorriam de seus olhos.

Sem deter-se em cogitações íntimas, Maria desce a escadaria do palacete e ordena às aias que trouxessem o ancião a sua presença. Demandou-lhe imediatamente mais informações acerca do galileu, o estranho rabi sobre o qual comentavam. O velho judeu falou-lhe por horas seguidas a respeito dos feitos daquele homem. Da maneira incomum como se portava ou agia, do brilho de seus olhos e da suavidade de sua voz. Maria agora era arrebatada pelas lembranças de seus sonhos. À medida que o senhor o descrevia e contava suas histórias, tinha mais e mais a certeza de que aquele era o homem por cuja imagem era perseguida noite após noite e na presença do qual esperava encontrar o amor que um dia a seduziu apenas com o brilho de um olhar.

Combinou com Mnair, aquele velho judeu, que se lançasse a procurar o rabi e, abastando-o da quantidade apropriada de moedas, ordenou-lhe que a comunicasse imediatamente, assim que o tivesse encontrado.

Maria modificou-se ainda mais nos dias que antecederam o seu encontro. Durante a busca e a espera, que lhe pareciam infinitas, perdera o apetite e já não dormia mais, abatendo-se visivelmente. Tornou-se objeto de preocupação de suas serviçais, que a essa altura já julgavam doente a sua senhora.

Passados dias longos e angustiosos, retorna o ancião ao palacete, trazendo a Maria notícias urgentes.

Encontrara o galileu. Ele se dirigia ao lar de um certo Simão, de sobrenome Barjonas, em Cafarnaum. Segundo as informações apuradas, ele lá se demoraria por alguns dias, o que daria a Maria tempo de tomar a estrada e chegar ao lugarejo para onde o homem misterioso rumava.

Sem pestanejar, Maria trocou suas vestes de seda e púrpura pelas vestes simples de suas serviçais, descendo então as escadarias do palácio dos prazeres modificada pela esperança de encontrar e encontrar-se na visão daquele homem que a fascinava.

Deu instruções às suas aias e imediatamente pôs-se a caminho, juntamente com o ancião, que lhe fazia companhia. Disfarçada em trajes simples, procurava a discrição e a modéstia, atributos que jamais lhe haviam sido úteis nas conquistas até aquele momento.

A vida envia-nos sempre seu bilhete, convidando-nos à renovação interior. Adormecidos nas velhas concepções ou na manifestação grosseira dos sentidos, às vezes deixamos de perceber a hora da mudança. Mas quantos despertam da letargia sensorial e procuram dentro do Si encontram as respostas para seus anseios. Dissipam-se as trevas da ignorância ante a luz do conhecimento da verdade e do bem; revela-se o belo que habita o interior e constitui cada ser humano em sua essência. Desperta um novo ser, um novo homem.

Cafarnaum estava repleta de gente que afluía às ruas, seguindo os passos do galileu. Muitos o buscavam tendo em mente que seriam satisfeitos em seus desejos mais mesquinhos e inferiores, pois estavam à procura da saciedade imediata de suas necessidades. Outros o procuravam com o objetivo escuso de tirar proveito da aura de fama e projeção social que o envolvia, explorando a plebe, por vezes crédula e ingênua, com promessas jamais cumpridas, sem hesitar em barganhar com a fé alheia. Havia ainda aqueles que intentam projetar-se à sombra do rabi, tentando obter da multidão os títulos da glória efêmera, explorando-lhe a presença naquelas cercanias.

Poucos eram os que procuravam o homem da Galiléia conscientes de sua superioridade moral ou da necessidade íntima de abandonar-se sob sua paternal proteção.

Maria, entretanto, apesar de todos, dirigiu-se ao local para onde a multidão convergia. A casa era simples e humilde. O povo se comprimia em torno da singela morada, esperando em silêncio a manifestação do galileu. Estavam orando no interior da vivenda. Era o culto no lar de Simão Barjonas, o homem denominado Pedro nas dissertações evangélicas.

Maria demorou-se, aflita, a alguma distância da porta. Ansiam por aquele momento com todas as forças de sua alma. Não imaginava como se daria seu encontro com o homem da Galiléia. O que será que ele lhe diria? Será que lhe pediria algo em troca de seus sentimentos de mulher? Mas o que sentia, na realidade? Sabia com certeza apenas que os seus sentimentos eram diferentes. Não mais buscava a ilusão dos sentidos ou o torpor da consciência. Estava aos poucos, despertando da letargia espiritual.

O sol encontrava seu ocaso. Os últimos raios dourados inflamavam a pele morena de Maria, enquanto os umbrais do lar de Cafarnaum eram dardejados pelos reflexos luminosos do astro-rei. Repentinamente um vulto veio em direção ao portal. O coração de Magdala disparou, e sua consciência ameaçou entrar em colapso. A multidão calara-se diante da presença daquele que irradiava amor e empalidecia o brilho dos raios de sol.

Sua figura altiva, porém suave, apresentou-se à turba que o buscava. Mas seu olhar procurava na multidão quem o necessitava. Seus cabelos amendoados refletiam o fulgor do crepúsculo e dos raios de sol, enquanto seu olhar, procurando o de Maria, nela fixou-se por instantes. O silêncio dominava a alma de Magdala. Era o silêncio do espírito, a serenidade indescritível. A paixão que se dissolvia na presença terna do amor.

O rabi, sondando a alma de Maria em profundidade, abriu a boca e melodiou: "Maria, todos os homens te procuram porque te desejam. Eu tão-somente te amo".

Maria ameaçou desfalecer, e foi amparada por alguém da multidão. Pronunciando aquelas palavras, o rabi da Galiléia voltou-se para a multidão e passou a amá-los.

Diante de tal revelação de amor, Maria jamais seria a mesma. A suavidade da voz do galileu e seu doce e terno olhar penetraram nos mais recônditos esconderijos de sua alma. Ela transformou-se, a partir de então, em um astro de espiritualidade que fora tocado pela luz imortal da estrela de primeira grandeza, que é Jesus, e agora refletia essa luz.

De volta para seu palacete, dispensou as aias e distribuiu suas riquezas entre aqueles que antes a serviam. Embora todos a tivessem na conta de alguém que tivesse perdido o juízo, Maria de Magdala procurou desfazer-se das propriedades e do luxo, doando tudo e despindo-se de todos os haveres. Retornou então a Cafarnaum, passou à Galiléia, seguiu para Beréia e nunca mais deixou de seguir a Jesus.

Transformou-se na figura de mulher que seguia os passos e ensinamentos do rabi galileu. Onde quer que o Mestre se apresentasse, aquele vulto de mulher o seguia, pois agora encontrara o homem de sua vida, o homem Jesus. Sucumbira e deixara-se conquistar pelo amor incompreendido. Diluíra inteiramente seu ser na maior manifestação de amor que o mundo jamais conheceu, o amor de Jesus. Afinal, Ele foi aguardado durante séculos, foi cantado em versos, profetizado nas diversas línguas, e todos os povos conheciam algo de sua pessoa. Ele era o desejado de todas as nações. Maria não pôde resistir a tão grande amor e, em apenas um dia, diferente de todos os dias da humanidade, numa manhã de sol do primeiro dia da nova raça que nascia, Maria, a de Magdala, transformou-se na mensageira da ressurreição. Era a Maria da vida, a Maria do amor, a Maria de Jesus.

Estevão