CAPÍTULO VI
A MULHER EQUIVOCADA

Mas Jesus foi para o monte das Oliveiras. De manhã cedo apareceu de novo no templo, e todo o povo se reunia em volta dele, e ele se assentou para os ensinar. Os escribas e os fariseus trouxeram a Jesus uma mulher apanhada em adultério. Puseram-na de pé no meio do grupo, e disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi apanhada em adultério. Na lei nos ordenou Moisés que tais mulheres sejam apedrejadas. Ora, o que dizes? Eles usavam esta pergunta, como uma armadilha, para terem de que acusá-lo. Mas Jesus se inclinou e começou a escrever na terra com o dedo. Como insistissem na pergunta, ele se endireitou e disse: Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra. Inclinando-se novamente, escrevia na terra. Quando ouviram isto, foram-se retirando um a um, a começar pelos mais velhos, até que ficou só Jesus e a mulher no meio onde estavam. Jesus endireitou-se, e disse: Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou? Respondeu ela: Ninguém, Senhor. Disse Jesus: Nem eu também te condeno. Vai, e não peques mais. (João, 8:1-11)

Aquela mulher tivera sua adolescência como todas as filhas de Israel. Cheia de vida e esperança no porvir, crescera em meio às festas de seu povo, às brincadeiras de criança e ao estudo discreto dos escritos sagrados dos profetas.

Abrigara em sua alma o desejo de encontrar alguém um dia, uma alma afim, cujos sentimentos pudessem encontrar ressonância com os seus. Por certo que a menina- moça desconhecia as leis da reencarnação, tanto quanto desconhecia seu próprio futuro. Não sabia, em meio a seus anseios de menina-mulher, que deveria enfrentar o seu passado através do reencontro com determinada alma, em companhia da qual deveria aprender a amar.

Seus anseios de mulher encontraram eco no coração de um homem que, embora um tanto mais velho que ela, parecia entender-lhe a alma sensível. Pelo menos assim o demonstrara nos poucos contatos que tiveram.

Inebriada pela presença masculina, entregou-se com extrema sensibilidade àquele que, segundo podia julgar, era o portador de sua felicidade e o depositário de suas esperanças. A união ocorreu, administrada pelo sacerdote do templo, conforme rezavam as leis de seu povo.

Desde os primeiros momentos, após as festas comemorativas, e a seguir, no convívio mais próximo, pôde notar que alguma coisa indefinível parecia nublar o coração do homem que a escolhera. No entanto, a fantasia da paixão impediu que aprofundasse suas observações, deixando transcorrer precioso tempo até que a desejada felicidade começou a se diluir em meio à realidade.

Dia a dia aquele homem exigia-lhe coisas e atitudes que confrontavam seus princípios e sua postura íntima. Entretanto, a insegurança que lhe dominava o ser, tendo em vista as possibilidades que a lei de Moisés descortinava para as mulheres de então, fez com que ela cedesse pouco a pouco.

A angústia se instala definitivamente na alma daquele que abriga em si o desrespeito às convicções íntimas. Trair os próprios ideais, nobres porque fruto de conquista interior, é escolha dolorosa, que em casos extremos provoca o descontentamento com a vida e o esgotamento do ânimo e do entusiasmo.

Embora lentamente, o homem de seus sonhos se transformava em emissário de seus pesadelos.

Ante as dificuldades econômicas que assolavam a sua terra, as quais lhe pareciam intransponíveis obstáculos, o autor de sua desdita convenceu-a a abrir mão de sua honra. Foi nesse momento de insanidade espiritual que ela pôde descobrir o verdadeiro caráter daquele com quem se unira.

Ela não via outra opção diante das constantes ameaças que o verdugo de sua alma lhe pronunciava. Sentiu-se obrigada a compartilhar seu corpo com aqueles que lhe ofereciam moedas, preciosas para o deleite do homem que a desposara. Sentia-se angustiada e aflita; abatida e desonrada; injustiçada pela vida e impotente diante do jugo que lhe era imposto.

O tempo foi-se passando, e a situação, porque mais e mais aflitiva se lhe afigurava, finalmente tornou-se insuportável. O estilo de vida que se sentia obrigada a levar desfigurava -lhe a aparência, antes suave e bela. As marcas dos tormentos íntimos e daqueles outros sofrimentos a que se submetia, de natureza física, em breve sulcaram sua face, deixando-lhe registrados no corpo e na alma vincos profundos. Seu corpo já não atraía mais os interesses dos mercadores de corpos, exploradores de almas.

O companheiro ao qual ela jurara fidelidade eterna fora ele mesmo o artífice de sua desgraça. Ela se transformara num fantasma de mulher.

A lei de Moisés, que regia as relações sociais da Judéia daqueles tempos, prescrevia penas graves para as mulheres que fossem surpreendidas em flagrante de adultério. Além disso, a mesma lei, imperfeita, liberava o homem dos compromissos assumidos no matrimônio caso a sua companheira fosse flagrada em tal postura equivocada. Baseado nessa realidade legalista, tão comum àquela época, arquitetou-se o plano para que a angustiada mulher fosse exposta à vergonha, já que não se prestava mais aos objetivos inescrupulosos do homem que a desposara.

O calendário sinalizava o final das festas dos tabernáculos, também chamadas de festas das tendas. Por esse motivo, Jerusalém regurgitava de gente - era, portanto, o momento ideal para expor a mulher à vergonha e aos rigores da lei. Também naqueles dias algo mais ocorria, que talvez pudesse contribuir para a desdita da mulher. É que, segundo comentavam muitos, o Messias Nazareno estava, com seus discípulos, presente na capital espiritual da Judéia. Escribas e fariseus, sacerdotes e oficiais romanos se reuniam naquele dia na tentativa de obstruir os planos do Messias e mestre dos desvalidos. Expor a mulher duplamente, aos rigores dos sacerdotes e ao julgamento do pretenso Messias, talvez fosse a situação ideal que aquele homem esperava para, ao mesmo tempo, se ver livre do compromisso do casamento e cair nas graças dos fariseus.

A mulher foi arrastada entre a multidão, segurada pelos cabelos por aquele que aprendera a amar:

- Adúltera! - gritavam e esbravejavam todos, ameaçando a infeliz com tamanha ferocidade que a obrigava à exposição pública sem o direito de responder às acusações.

Jogada aos pés do Mestre, ante o olhar irônico dos escribas e fariseus, a mulher infeliz sentia que o fim estava próximo. Em casos como esse, a lei determinava que a adúltera fosse lapidada, isto é, apedrejada até que o dilaceramento da pele lhe causasse a morte. A fúria da multidão e a arrogância dos escribas, fariseus e sacerdotes faziam com que aquela alma estremecesse, agitada intimamente, verdadeiramente desesperada ante a perspectiva de sofrimento tão hediondo.

Foi nesse exato instante que um dos intérpretes da lei, com o objetivo de testar a fidelidade de Jesus ao que escrevera Moisés, decidiu expor o nazareno à multidão:

- Determina a lei que toda mulher flagrada em adultério deve ser apedrejada. E tu, que se diz Mestre, o que recomendas?

A artimanha dos adversários de Jesus atingira o ápice. Caso o Mestre liberasse a mulher, estaria frontalmente contra a lei de Moisés e, assim, seria Ele a vítima da multidão. No entanto, se se posicionasse a favor da lei, permitindo que a mulher fosse apedrejada, entraria em profunda contradição com seus próprios ensinamentos, os quais recomendavam o perdão. Seus adversários esperavam que nesse momento ele fraquejasse de uma forma ou de outra, e, então, seriam eles vitoriosos contra a causa do Evangelho.

Conhecendo-lhes a intimidade dos pensamentos, Jesus curva-se diante da mulher. Ensaia escrever, na poeira da rua, algumas palavras. Novamente, um dos adversários incita-lhe:

- E tu, mestre - enfatiza o título com ironia -, o que dizes? levantando o olhar, que cruza com os olhos da mulher, ele declara:

- Aquele entre vós que estiver sem pecado, que atire a primeira pedra.

Curvado, ele prossegue escrevendo no chão. Um a um, escribas e fariseus se aproximam para ler o que ele escrevia. Ali, grafada na poeira, estava escrita a lista de erros pessoais daqueles que queriam apedrejar a mulher, lentamente, a multidão dispersou-se. Sacerdotes, fariseus, escribas e também o homem, trespassado agora, pelo remorso -, se afastaram paulatinamente.

Em instantes, permaneciam apenas Jesus e a mulher. Esta ergue seu olhar lentamente, cheio de lágrimas, enfrentando, com as últimas reservas da alma, o olhar do Mestre. O medo estava estampado em sua face.

- Onde estão aqueles que te condenavam?

- Eles se foram, Senhor. .. - balbuciou a infeliz criatura, que se sentia assim, como se fosse a última filha de Eva.

Após a troca de olhares, o encontro com o divino, a mulher pressente que jamais será a mesma.

- Eu não te condeno! - falou Jesus.

- Senhor. .. - esboçou a mulher, deixando-se derreter em lágrimas. - Eu não queria ...

- Não te expliques, mulher. Não há por que te explicares. A ti é dada a oportunidade de reconstrução, de amar e de prosseguir.

- Mas, Senhor ...

- Não te desgastes, minha filha - o Mestre se adianta novamente. - Vá, aprende com a vida a lição divina e reconstrói tuas experiências e esperanças sob o signo do amor imortal. Não existe erro que se justifique, mas também não há mal para o qual não haja reparação. Ama, ama com as forças que lhe restam na alma, e ninguém te condenará.

Aquele momento ficou para sempre registrado na luz eterna. Um marco na trajetória de uma alma; um farol para os futuros seguidores da Boa-Nova.

O tempo se passou sobre aqueles eventos, e eis que, anos depois, em uma cidade distante da Grécia, uma casa se ergue. Uma choupana no caminho, administrada por uma mulher transformada e renovada pelo amor. Ali, sob sua tutela, os viajores encontravam repouso para a sua jornada difícil, crianças eram amparadas e velhos socorridos em nome do amor.

A noite, reunidos em torno da madona que os tutelava, ouviam a história de um grande amor; embevecidos, recebiam o néctar do Evangelho e entendiam a proposta do Mestre, expressa na história daquela que foi imortalizada nas páginas do Evangelho como uma alma equivocada, mas ressurreta pelo amor, que tudo envolve e abençoa.

Eis que o tempo, divino professor, reserva surpresas aos apreciadores dos caminhos humanos.

Certo dia, o sol ainda brilhando no horizonte, quando caía a tarde naquelas paragens gregas, mais uma alma errante bate à porta daquela que se tornara mãe de quantos necessitados a procuravam. Confiante nas possibilidades que do Alto encaminha àquele que tem coração e põe seu amor e seus recursos a serviço do próximo, a madona, ora marcada pelo brilho que o Mestre deixara em seus olhos, recebe à entrada mais aquele viajor. Os sulcos em sua face, adquiridos outrora, eram agora as marcas do Cristo.

-A paz seja contigo ! -a mulher saúda aquele homem encolhido que se apresentava no caminho.

Travestido pela lepra, o homem agonizava em seus últimos tempos, no limiar de suas forças, e mais parecia arrastar-se do que caminhar. Cada passo e cada movimento lhe eram penosos. Cabeça baixa pela corcunda e pelo esforço que o deslocamento até aquele abrigo lhe havia exigido, ele finalmente ergue os olhos na direção daquela voz que o recebia. Balbucia palavras de difícil compreensão e é imediatamente acolhido pela generosa senhora.

Em seus últimos dias, o homem infeliz, deprimido e corroído pelo arrependimento, lamentava-se com aquela que lhe fazia companhia no leito de morte. Palavras saíam com esforço de sua boca e relatavam a história de uma mulher que esse homem possuíra um dia, a qual não soubera estimar. Esta, a causa de seu remorso, de sua amargura.

- Ah! Se um dia pudesse apenas encontrá-la, uma vez sequer, para dizer-lhe quanto errei, quanto sofro com a lembrança recorrente daqueles dias na Judéia ...

Uma lágrima de comoção genuína escorria pela face daquela que, agora, ouvia a história de seu protegido, envolto em prantos e lamentos. Lágrima de reconhecimento da sabedoria do Pai, lágrima de gratidão, expressão de sensibilidade pela dor alheia. Lágrima de amor.

Aquele homem jamais a reconheceria, até os dias de sua morte. Ela, contudo, identificara-o desde o dia em que se apresentou à porta de sua choupana. Era o homem que fora a desdita de sua juventude. Acolhia agora, sob seu teto, o próprio ex-marido. Aquele que, um dia, jogara-a aos pés do Mestre de Nazaré e lhe dera a conhecer o amor, o amor que veio à Terra.

Estevão