CAPÍTULO VIII
A MULHER SAMARITANA

A - O CÂNTARO VAZIO

Estava ali a fonte de Jacó, e Jesus cansado da viagem, assentou-se junto à fonte. Era quase a hora sexta. Vindo uma mulher samaritana tirar água. Jesus lhe disse: -Dai-me de beber. (Seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida). Disse-lhe a mulher samaritana: Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana? (Pois os judeus não se dão com os samaritanos). Respondeu-lhe Jesus: Se conheceres o dom de Deus, e quem é o que te pedes: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva. Disse-lhe a mulher: Senhor, tu não tens com que tirá-la, e o poço é fundo, Onde tens a água vim? És tu maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, do qual ele próprio bebeu e, bem assim, os seus filhos e o seu gado? Respondeu Jesus: Todo aquele que beber desta água tornará a ter sede, mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede. Deveras, a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água de água que jorre para a vida eterna. Disse-lhe a mulher: Senhor, dá-me dessa água para que eu não mais tenha sede, nem precise vir aqui tirá-la. Disse-lhe Jesus: Vai, chama o teu marido, e vem cá. Respondeu ela: Não tenho marido. Disse-lhe Jesus: Tens razão em dizer que não tens marido, pois já tiveste cinco maridos, e o que agora tens não é teu marido. Isto disseste com verdade. Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és profeta. Nossos pais adoraram neste monte, mas vós, os judeus, dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar. Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me, a hora vem em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai, Vós, os samaritanos, adorais o que não conheceis; nós adoramos os que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, pois o Pai procura a tais que assim o adorem. Deus é espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade. Disse-lhe a mulher: Eu sei que o Messias (chamado Cristo) vem. Quando ele vier, nos explicará tudo. Disse-lhe Jesus: Eu o sou, eu que falo contigo. Nesta altura chegaram os seus discípulos,e maravilharam-se de encontrá-lo falando com uma mulher. Mas nenhum deles perguntou: Que queres? ou: Por que falas com ela? Então, deixando o seu cântaro, a mulher foi a cidade e disse ao povo: Vinde, vede um homem que me disse tudo o que feito. Poderia ser este o Cristo? Saíram da cidade e foram ter com ele. (João, 4:6-30).

Ouvia-se um estranho canto no ar. A sua voz era semelhante à voz das filhas de Sião. Melodiosa, suave, terna. A música cantada mais parecia o sussurro das almas sofridas ante os problemas de qualquer procedência. Parecia um lamento, acompanhado pelos gorjeios dos pássaros, que, naqueele dia, pareciam festejar a vida, esvoaçando e fazendo coro com a voz da mulher, que ousava pensar na felicidade.

Não se pode dizer que a vida naqueles campos era exatamente diferente das experiências de qualquer lugar. Não! Dificuldades e provações fazem parte da morada dos homens, que deverão aprender a temperar suas vidas com a candura e o amor. Poderão amenizar, dessa forma, as provas pelas quais passam.

A mulher, cantando com os pássaros e a natureza, trazia debaixo dos braços um cântaro vazio, para enchê-lo com a água abençoada que jorrava do poço cujo nome fora dado em homenagem ao patriarca Jacó. O cântaro era sinônimo de sua própria experiência, de seu coração.

A medida que cantava, relembrava seu passado recente, suas peripécias pelos caminhos tortuosos da existência. Não era assim tão diferente a história daquela mulher. A música que cantava fazia fundo para as lembranças que lhe queimavam a memória espiritual. Subia o monte das dificuldades.

Buscara desde cedo a felicidade nos braços do amor, porém por caminhos difíceis e sinuosos. Desvirtuava o templo sagrado de seu espírito, dividindo-se, ora aqui, ora ali, com os homens com os quais compartilhava a vida.

Foram muitas as experiências que vivenciara; entretanto, algo de indefinível permanecia dentro dela. Era um vago sentimento de inconformação e de vazio. Sua vida assemelhava-se àquele cântaro vazio, que ela conduzia debaixo dos braços.

Na aldeia de Samaria, ficara conhecida como a mulher de várias faces. É que ela trocava de experiências amorosas com a mesma facilidade com que trocava de roupa. Seus companheiros, após certo tempo, a abandonavam sob vários pretextos, deixando-a entregue à nostalgia de uma vida sem objetivo. Sentia a alma ressequida. Tinha sede. Não a sede de água, que todos tinham. Fartara-se, porém, das experiências mal-sucedidas. Andava em busca de algo que ela mesma não saberia definir. O atual companheiro viera para sua presença deixando uma família constituída, a qual trocara por ela. Isso não era felicidade, pensava ela. De que lhe adiantaria tentar construir sua felicidade baseando-se na desgraça alheia?

Ela continuava sua jornada pensativa. Entoava uma das canções tristes de sua terra. A natureza tocara-lhe profundamente a alma, sensibilizando-lhe o ser. Aquele momento de meditação seria o adubo de sua alma para as sementeiras do porvir. Não imaginava que a tão sonhada felicidade batia-lhe às portas do coração. Como todos os seres humanos, ela também desejava ser feliz. Tinha sede de viver em plenitude. Ansiava por algo que preenchesse o vazio existencial.

Assim pensando, dirigiu-se ao poço de Jacó. Buscaria água para as necessidades do cotidiano. Ao se aproximar, viu que também vinham do poço alguns homens. Pareciam judeus.

Não sabia como se comportar na presença de judeus. Eram de cultura diferente, e, apesar de suas cidades serem tão próximas, imperava à época determinação que proibia os habitantes de cidades samaritanas de ter conversas com judeus. A história havia separado nações irmãs, que se mantinham isoladas graças ao preconceito e à disposição geral em acatar os costumes e a tradição.

Apressou os passos para chegar primeiro ao poço, antes que aqueles homens pudessem alcançá-lo, e partir logo após encher o seu cântaro. Mas ... Há sempre um "mas" na história de todos os tempos, de todos os homens, de qualquer lugar. Um sentimento de repente envolveu-lhe o coração. Não sabia ela que, entre aqueles homens, estava o Filho do Homem. O embaixador da esperança dirigia-se também para o poço. Sua aura havia tocado a intimidade daquela mulher, produzindo-lhe um bem-estar surpreendente.

O coração da mulher batia descompassado. Por que estranho mistério estava assim tão alterado o seu organismo? Seus pensamentos pareciam fervilhar, como se algo a penetrasse intimamente, arrancando de seu ser estranhas recordações. A música silenciara de seus lábios e ouvia uma outra música, mais sublime e elevada. Pássaros voejavam felizes, enquanto a natureza parecia resplandecer ao seu redor. Tudo se preparava para receber a fecundação da vida.

Os homens se aproximaram do poço do patriarca hebreu, encontrando a mulher, que enchia seu cântaro, desconcertada. Ela não sabia o que lhe acontecera. Contudo, aquele era um momento único na história de sua jornada pelos séculos. Sem que esperasse, um dos homens lhe dirige a palavra, contrariando o costume de judeus e samaritanos:

- Mulher! - principiou Ele.

Ela estremeceu. Palpitava-lhe o coração, enquanto gotas de suor desciam-lhe pela face.

- Mulher, dá-me desta água de beber - disse o estranho judeu, sem hesitação.

Ela ousou levantar o seu olhar em direção ao homem, ao Filho do Homem.

Era jovem; cabelos encaracolados desciam-lhe sobre os ombros. Olhos amendoados refletiam a bondade e o brilho dos sóis. Seus lábios entreabertos pareciam sussurrar estranhos hinos, que não saberia repetir.

- Mas, Senhor ... - a voz da mulher ficou embargada diante da emoção que tomava conta de si. -Mulher! - repetiu, bondoso. - Tenho sede, dá-me desta água de beber.

Por momentos, estranho silêncio se fez sentir em toda a natureza. Como poderia Ele, a fonte da água viva, estar com sede? Como poderia a água viva sentir a boca ressequida?

- Mulher, dá-me desta água de beber!

A voz daquele homem ainda ressoava em seus tímpanos quando sentiu o seu olhar rasgando-lhe a alma, realizando uma cirurgia em seu coração dilacerado.

- Senhor, como podes tu, sendo judeu, pedir água a mim, que sou samaritana?

É que o amor não encontra fronteiras. As posições, títulos, hierarquias e nacionalidades perdem importância diante da figura do amor.

- Ah! mulher, mulher! Quem dera tu me conhecesses ...

Era o divino em busca do humano. Se o homem conhecesse o amor, por certo não estaria perdido em meio às sinuosidades do caminho. Sua alma encontraria a saciedade.

- Se tu me conhecesses, tu mesmo é que me pedirias, e eu lhe daria uma água que, se a tomasses, jamais terias sede novamente.

- Senhor ! - balbuciou a mulher. - Dá-me então dessa água divina ...

- Na verdade, na verdade te digo que aquele que bebe da água que eu lhe der, de seu interior arrebentarão rios de água viva, e jamais terá sede.

A voz do Mestre ressoou pelas campinas. Atrás do véu que separa a realidade da vida, mensageiros de luz iam e vinham, realizando no espaço uma apoteose de luz, a dança do amor, brindando à nova era que se estabelecia.

Sem barreiras, sem sacerdotes nem templos de pedra, a nova religião do amor era estabelecida no templo do coração, tendo por altar a própria natureza, que em festa recebia as vibrações da voz do Rabi, o verbo de Deus.

Estremecendo, a mulher deixou escorregar o cântaro, que não mais satisfazia às suas necessidades, e abriu-se inteiramente para receber a água viva que iria transformar por toda a eternidade o seu destino.

A grandeza e a solenidade daquela hora só podem ser compreendidas por quem a viveu. Impossível ao vocabulário humano descrever as cenas de beleza imortal que se passaram no cenário das terras do Jordão, de Cafarnaum, de Betsaida, de Samaria ou de Judá.

Ante a presença do amor, a mulher de Samaria viu-se vencida. Quedou seu espírito ante as torrentes de água viva que eram derramadas em sua alma, e, a partir daquele momento, a humanidade pôde conhecer a força viva da fé, que, através daquela mulher, irradiou-se no mundo. Primeiramente entre os samaritanos e, mais tarde, naquela mesma vida e em outras tantas vidas, foi o seu exemplo sublime que tocou corações de muitos povos, porque imortalizado nas páginas sublimes do Evangelho do Senhor.

Heroína da fé e da virtude, após o encontro com o Mestre arregimentou forças e distribuiu o seu coração em doação plena de amor, num hino de exaltação à fonte fecunda e infinita do amor de Jesus.

Estevão