CAPÍTULO XI
A CURA DO PARALÍTICO

Alguns dias depois entrou outra vez em Cafarnaum, e soube-se que estava em casa. Logo se ajuntaram tantos, que nem ainda nos lugares junto à porta cabiam, e anunciava-lhes a palavra. Vieram ter com ele conduzindo um paralítico, trazido por quatro homens e, não podendo aproximar-se dele, por causa da multidão, descobriram o telhado onde estava e, fazendo um buraco, baixaram o leito em que jazia o doente. Jesus, vendo a fé deles, disse ao paralítico: Filho, perdoados estão os teus pecados. Estavam ali assentados alguns dos escribas que arrazoavam em seu corações: Por que proferes este assim blasfêmias? Quem pode perdoar pecados, senão Deus? Jesus, conhecendo logo em seu espírito que assim arrazoavam entre si, lhes disse: Por que arrazoais sobre estas coisas em nossos corações? Qual é mais fácil, dizer ao paralítico: Estão perdoados os teus pecados, ou dizer-lhe: Levanta-te, toma o teu leito, e anda? Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem na Terra poder para perdoar pecados (disse ao paralítico): A ti te digo: Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa. Ele se levantou e, tomando logo o leito, saiu na presença de todos, de sorte que todos se admiraram e glorificaram a Deus, dizendo: Nunca vimos tal coisa. MARCOS 2:1-12

A Galiléia era uma região de rara beleza. Ali ficaram escritas, nas páginas do tempo, as mais belas lições do Evangelho, imortalizadas nas montanhas e vales, nas areias do mar de Tiberíades ou nas folhas de suas árvores; a cantata de amor dedilhada pelo Mestre na harpa sensível de sua alma ainda ressoa na atualidade.

Em Cafarnaum, a cidadezinha que viu nascer muitos dos ensinamentos de Jesus, morava também Simão Barjonas. O frescor das planícies e os ventos benfazejos de Genesaré atraíram para a região a atenção de reis e governantes ao longo da história, que para lá se dirigiiam em férias. De extensão pouco maior que a baía da Guanabara, o mar de Genesaré, também conhecido como Tiberíades ou mar da Galiléia, era de um raro esplendor. Talvez, por isso, lembrasse a Jesus as profundezas da alma humana, que ele amava integralmente.

Subindo num monte próximo, o Rabi olhava a região ao redor com a alma nostálgica. Ao longe, as moradas de pescadores e de homens simples, cujas almas robustas estavam prestes a ser transformadas para sempre em cartas vivas do sublime amor.

O meigo Rabi desceu o monte em direção à casa de Simão. Mesmo ainda distante, pôde observar a multidão que se acotovelava junto à morada do pescador de almas.

Àquela época, as casas eram construídas de forma particular. Jardins embelezavam até mesmo a mais simples morada dos homens. Os aposentos eram distribuídos na periferia, enquanto a área central das residências era dedicada ao lazer, como se fosse uma sala de visitas. A cumeeira era feita com clarabóias, de tal forma que pudessem ser abertas e assim dar entrada ao ar que provinha do mar, refrescando todo o ambiente. Normalmente se encontrava no fundo das casas uma escada improvisada, através da qual se pudesse chegar às clarabóias.

A casa de Simão não era diferente. Também não era diferente dos demais homens o comportamento do filho de Jonas. Havendo convidado o Mestre para pousar em sua vivenda, Simão também se incumbiu da tarefa de divulgar por todos os arredores de Cafarnaum que receberia naquela tarde a visita especial. Afinal, todos precisavam saber que ele era amigo íntimo de Jesus. Os conhecidos e vizinhos deveriam ter notícia de que Simão usufruía da presença do Mestre, de tal forma que sua casa e sua pessoa fariam parte dos comentários de todos os habitantes dos derredores.

Mas não somente os amigos tiveram a atenção despertada para a visita de Jesus à casa de Simão. Escribas e fariseus, representantes do Sumo Sacerdote, igualmente acorriam ali, na esperança de poder tentar Jesus e colocar fim publicamente ao trabalho do Mestre, que tanto os incomodava. Além deles, a notícia da visita de Jesus atingira a multidão de aflitos e desesperados, ávidos de benefícios imediatos. Este era o quadro que se esboçava naquela tarde, quando Jesus se dirigia à casa de Simão, também chamado Pedro.

A multidão se acotovelava à porta de entrada da pequena casa, enquanto Pedro, do lado de dentro, era alvo de perguntas, olhares e observações das pessoas presentes. De certo modo, ele se sentia o segundo homem mais importante naquela tarde, já que era o anfitrião e amigo pessoal de Jesus, o Mestre dos desvalidos.

Sabendo o que o aguardava nas horas que se seguiriam, Jesus cobriu a cabeça com o manto que lhe fora oferecido por Maria, sua mãe. Disfarçava sua aparência e seu olhar, a fim de que pudesse chegar à casa de Simão. A caminho, decidiu entrar pelos fundos, pois chamaria menos atenção naquele momento.

Dentro de casa, a multidão já se encontrava impaciente, aguardando a presença daquele que representava a solução para seus mais diversos problemas. Cobravam de Pedro, constrangendo-o. O apóstolo tentava acalmar os ânimos, pois sua experiência dava-lhe convicção de que Jesus não faltaria ao compromisso, embora não havia sido combinada a presença de tanta gente, como ocorria ali. Todavia, Pedro sabia do amor de Jesus, e, afinal, ainda que a seu modo, o próprio apóstolo estava contribuindo com a divulgação da mensagem da boa-nova. Num gesto muito humano, Pedro somava-se à multidão, procurando beneficiar-se da amizade e da visita do Mestre. Ele conseguira chamar a atenção de muita gente para si e para o fato de que era amigo pessoal de Jesus de Nazaré.

Disfarçando seu olhar inigualável e inconfundível, Jesus caminha despercebido para os fundos da casa de Pedro e, por lá, adentra o recinto. Quando ainda estavam todos dominados pela euforia das conversas e comentários, o homem da Galiléia, de Nazaré e de todos os lugares caminha até a sala e lentamente retira o manto de sobre a cabeça.

Se na aparência Jesus se confundia com o homens mais simples do povo, isso não ocorria com seu olhar. Ao fitar a multidão, que conversava em voz alta e tom elevado, um a um que cruzava os olhos com o olhar de Jesus ia aos poucos se acalmando. O burburinho cessava progressivamente, e, antes mesmo que se estabelecesse o silêncio completo, ouviu-se na casa de Simão a voz magnética e distinta do mestre nazareno:

- A paz seja convosco !

A bênção que costumeiramente Jesus pronunciava, do hebraico SHALOM, magnetizava a multidão, que imediatamente se calou. O olhar de todos se voltava agora para Jesus, enquanto Simão passava para o segundo plano. Mãos estendidas, olhar profundo e devastador, ele falava para a alma. Baixou com vagar seus braços, à medida que caminhava, e, a passos lentos, pôs-se a falar, logo abaixo da clarabóia:

- Vim trazer-vos o reino do meu Pai. E a minha palavra é revestida de autoridade, pois que esse reino que anuncio aos vossos corações é a extensão da minha própria vida. Trago-vos a boa-nova, a notícia de um reino que já foi inaugurado, embora muitos não o tenham percebido. Esse reino de Deus será a esperança para os famintos e sedentos de justiça e misericórdia. Nele, os anseios da alma humana serão plenamente satisfeitos, já que todos anelam pela felicidade. Porém, as bases e a política desse reino novo não se assemelham às políticas humanas. Eis que vos trago algo que ultrapassa o atual pensamento da humanidade. Trago-vos a política divina do "amai-vos uns aos outros". A força desse reino está no coração, na capacidade de amar, de doar-se, transformando-se cada um de vós na mensagem viva e no próprio mensageiro da felicidade.

A multidão estava admirada com a força moral da qual se revestiam as palavras de Jesus. Estavam habituados a ouvir os longos discursos nas sinagogas, que mais serviam para aumentar o orgulho dos fariseus. Mas ali estava quem era superior a toda encenação farisaica. Jesus falava com convicção e ao mesmo tempo com profundidade. Ele sabia tocar a alma humana com palavras fáceis de serem compreendidas. Desprovido da complexidade do vocabulário aprendido na educação mundana e que não atingia o objetivo, Jesus falava ao coração. E, porque vivia tudo o que pregava, havia em sua mensagem uma força moral irresistível.

Escribas e fariseus, incomodados, ameaçavam deixar o ambiente, pois sentiram que não havia como enfrentar o homem chamado Jesus. Quase desistiram de ali permanecer, quando a situação modificou-se bruscamente. Ouviu-se um barulho repentino, um burburinho na multidão, que até então estava como que estagnada diante da mensagem do Cristo. É que, do lado de fora, alguns homens tentavam abrir passagem para conduzir a Jesus um paralítico, enfermo do corpo e da alma. No entanto, a resistência era maior do que esperavam. Jesus, conhecendo a dor do homem que estava sendo conduzido no leito, aumentou a voz, continuando a falar ao povo. Não se deixou interromper, embora o seu psiquismo já houvesse captado o pedido mudo de socorro que partia daquele homem.

Devido à resistência oferecida pela multidão, que se acotovelava na entrada da casa de Pedro, os condutores do homem paralisado decidiram buscar outro caminho. Foram pelos fundos da casa. Lá encontraram a escada, que conduzia à clarabóia, e arquitetaram um plano para levar o infeliz homem à presença de Jesus. Amarraram o pobre ser em sua maca e, com algumas cordas, o elevaram até a clarabóia da casa de Simão.

Jesus ainda se dirigia ao povo; entretanto, como sabia o que se passava no exterior da casa, deu dois passos para trás e, sem que sequer notassem seu gesto, liberou o local que ficava logo abaixo da clarabóia. A seguir, todos presenciaram algo incomum. Um homem era içado da clarabóia lentamente. O olhar dos presentes desviou-se até o paralítico, que estava então amarrado a seu leito e descia pouco a pouco em direção a Jesus.

Ao ser depositado no chão, aos pés do Mestre, todos se calaram de imediato, já que a intromissão tão incomum havia despertado os ânimos. Escribas e fariseus em seu canto cochicharam:

- Queremos ver agora como ele poderá mostrar a força de seu tão falado reino.

- Não dizem que ele cura? - ironizou outro. -Conhecemos este miserável e sabemos que sua doença é incurável. Vejamos como o rabi se sairá então ...

O homem, deitado e ainda preso à padiola que lhe servira de elevador, trazia os membros endurecidos, rijos já havia muitos anos. Ainda podia falar, todavia. Foi então que todos ouviram a sua voz, gutural, rasgando-lhe a garganta e, diante do esforço, fazendo com que sua fisionomia se transformasse numa máscara de rara feiúra:

- Jesus, filho de Davi, tenha misericórdia de mim! O Mestre, parado, mirava o homem paralítico e sondava-lhe o coração, bem como os corações dos demais, que permaneciam à espreita do desfecho daquelas cenas.

Conhecia profundamente a alma dos homens e os seus pensamentos.

- Que queres que eu faça? - indagou Jesus.

- Que eu seja curado, Senhor - rasgava a voz daquele infeliz.

Os fariseus acreditavam que ali se encerraria o ministério de Jesus. Pensavam que o Mestre não tinha saída para a situação. Diante da multidão era colocado à prova o poder de Jesus e a veracidade de suas palavras.

Após breve diálogo com o homem, Jesus pronuncia: - Em nome do amor e do reino de meu Pai, eu te digo: levanta-te e anda!

- Mas, Senhor. .. - balbuciou o enfermo, em sua incredulidade. - Sou paralítico, e todos aqui me conhecem desde a mocidade. Eu não posso andar!

Fixando o olhar nos olhos do paralítico, o Mestre irradiava intenso magnetismo espiritual:

- Em nome do reino de amor e de meu Pai, que me enviou, eu te digo, agora: levanta-te, toma tua cama e vai

Fariseus e escribas murmuravam, questionando a autoridade de Jesus, e a multidão aguardava os resultados visíveis de seu poder.

O paralítico não conseguia desviar seus olhos do olhar de Jesus. Parecia que naquele momento o Céu encontrara a Terra, e desse olhar cruzado fluíam energias e uma intensidade de amor tal que nada no mundo lhe poderia opor resistência ou sequer nublar.

- Levanta-te - tornou a ordenar Jesus, com voz firme.

Em princípio um leve tremor passou pelos membros enrijecidos do enfermo de Cafarnaum. As mãos, paralisadas há décadas, começaram a se movimentar, enquanto jatos poderosos de fluidos extravasavam dos olhos do Mestre.

Ao verem o que ocorria, os fariseus e a população ali reunida começaram a falar, todos ao mesmo tempo, assustados, sem compreender a autoridade moral do Rabi.

Cada membro enrijecido daquele homem parecia ganhar vida repentinamente, e, enquanto isso, seus olhos não conseguiam se furtar ao olhar penetrante do Nazareno. Para o espanto e a comoção geral, o antigo paralítico vai aos poucos se erguendo. Após se curvar levemente diante do Mestre, já inteiramente de pé, toma o próprio leito e abre caminho entre o povo, estupefato.

Jesus o acompanhava com os olhos, e as pessoas ali presentes, mal haviam presenciado fenômeno tão surpreendente, cada uma com seus males procurava agora se achegar ao rabi da Galiléia, a fim de se beneficiar individualmente de alguma maneira.

Jesus passou o resto da tarde curando, falando do Reino. Do lado de fora, Pedro fazia questão de informar a cada um que saía de sua casa com a bênção de Jesus:

- Ele é meu amigo. Eu sou um de seus apóstolos.

Humano como todos os demais, Simão Barjonas igualmente projetava em Jesus seus anseios particulares; no seu caso, queria aparecer à sombra do Nazareno. Desejava se destacar ao lado de Jesus. Ele era apenas humano; o Mestre sabia compreendê-lo e permanecia amando-o profundamente. Em sua serenidade, Jesus conhecia certas experiências reservadas àquele filho de Deus, que, a seu tempo, aprenderia a lição da simplicidade.

Escribas e fariseus saíram furiosos do ambiente doméstico, sem se conformar com os fenômenos que presenciaram. Aliás, o fenômeno pura e simplesmente não convence nem converte. Ele apenas alicerça a fé daquele que creu, sem nada ver. Para o incrédulo, o fenômeno permanece incompreensível.

Jesus curava as dores do povo enquanto ministrava o ensino moral.

Mais tarde, quando Pedro notou uma gota de suor descendo à face de Jesus, despediu o povo, que não se fartava de receber os benefícios irradiados da doce presença do Mestre.

Jesus então convidou Simão Pedro para uma caminhada à beira do lago. Os ventos do mar da Galiléia alvoroçaram os cabelos de Jesus, que lhe caíam sobre os ombros. Naquela noite que se precipitava sobre a cidade de Cafarnaum, Jesus chorou. Uma lágrima discreta substituía o suor de minutos atrás.

Pedro, abraçando seu mestre, argumentou:

- Por que choras, Senhor? Eu mesmo vi os benefícios que distribuíste entre os homens! Eu vi pessoalmente o paralítico andar após o concurso do teu amor. ..

- Choro por ele, Pedro - sentenciou Jesus.

- Não entendo, Senhor.

- Não compreendeis ainda a natureza do meu reino de amor. A multidão também não conseguiu entender a minha mensagem. Aquele homem curado de paralisia - prosseguiu o Mestre - desce agora para o encontro com a prostituição, tentando, de acordo com seu entendimento, compensar os anos de reclusão benéfica e educativa proporcionada pela enfermidade.

- Mas, Senhor - tornou a falar Pedro. - E quanto àquela mulher, que curaste logo depois? Não estará ela por ventura feliz agora?

- Não, Pedro, ela também não compreendeu a mensagem do meu reino. Desce neste exato momento à planície e planeja se vingar dos familiares que a rejeitaram durante os anos de dissabor.

- Mas, Senhor. ..

- Choro por eles, Simão, e por você também.

Jesus deteve os passos próximo a uma pedra. Recostou-se nela e mirava as primeiras estrelas nos céus. Pedro resolveu respeitar o silêncio que se fazia, admirando também o firmamento.

Foi Jesus quem quebrou o silêncio, falando enquanto apontava as estrelas distantes:

- O meu reino, Pedro, é tão vasto como as estrelas dos céus. Hoje presenciaste o fenômeno e não o compreendeste. Mas virá a hora em que deverei retornar às estrelas e os deixarei na Terra, representando-me entre os homens.

- Senhor ...

- Quando eu for - falava Jesus, enquanto, agora, o apóstolo é quem chorava - enviarei um consolador para ficar convosco eternamente. Só então, quando ele vier, é que entendereis o significado verdadeiro de meus atos e de minhas palavras.

Pondo-se a caminhar novamente, o mestre de Nazaré, da Galiléia e todos os recantos da Terra retornou para a casa de Pedro, deixando a marca de seus pés sulcada nas areias do mar de Tiberíades. As águas em breve apagariam aquelas pegadas; contudo, o tempo não conseguiu apagar a grandeza do seu amor. Todas as guerras dos homens e todas as atitudes inglórias da humanidade não conseguiram apagar a grandeza do "amai-vos uns aos outros".

Estevão