CAPÍTULO XII
O CENTURIÃO DE CAFARNAUM

O servo de certo centurião, a quem este muito estimava, estava doente, quase à morte. Quando o centurião ouviu falar a respeito de Jesus, enviou-lhes uns anciãos dos judeus, rogando-lhe que viesse curar o seu servo. Chegando eles a Jesus, rogaram-lhe muito, dizendo: -É digno de que lhe concedas isto, porque ama a nossa nação, e ele mesmo nos edificou a sinagoga. Então Jesus foi com eles. Estando já perto da casa, enviou-lhe o centurião uns amigos para lhe dizer:-Senhor, não te incomodes, pois não sou digno de que entres em minha casa. Por isso não me julguei digno de ir ter contigo. Dize, porém, uma palavra, e o meu servo será curado. Pois também eu sou homem sujeito à autoridade, e tenho soldados às minhas ordens, e digo a este: Vai, e ele vai, e a outro: Vem, e ele vem. Ao meu servo digo: Faze isto, e ele o faz. Ouvindo isto, Jesus se maravilhou dele e, voltando-se, disse à multidão que o seguia: -Digo-vos que nem ainda em Israel achei tanta fé. Voltando para casa os que foram enviados, acharam curado o servo. Lucas, 7:2-10.

Os dias áridos haviam chegado cedo para aquele jovem. Ainda nos mais tenros anos da mocidade, seu pai fora atingido por uma das pragas que assolavam a população urbana, tornando a vida nas cidades algo ainda mais desafiador. Chefe de família, o patriarca procurara em Roma o trabalho que provia o sustento à mulher e aos dois filhos que muito amava.

Não mais se esqueceria da imagem dos cavalos chegando à região campesina e da euforia por pensar que era o pai que retornava à casa, após aqueles meses de labuta. Qual tristeza se apoderou das expressões juvenis ao deparar, pela primeira vez, com o corpo moribundo, ausente de vida. Lágrimas desceram-lhe à face, e, desde tal instante, ainda que doloroso, pudera-se notar a firmeza do espírito experimentado nas conquistas do ser.

Diante das reações amargas da mãe, envolvida na incompreensão e insensatez que o episódio fulminante fazia arder em sua alma, o jovem imediatamente impusera-se como líder familiar. Aos 13 anos já se fazia conhecer pela responsabilidade e pela consideração dos comerciantes que viajavam pela região.

A vida daqueles que pretendem seguir o caminho da retidão jamais é isenta de experiências dolorosas, que deixam profundas cicatrizes na alma. Esperar da vida a oportunidade de desenvolver valores de caráter a toda prova, sem as lágrimas e o suor que ainda marcam o aprendizado no planeta Terra, é como esperar a colheita sem arar a lavoura. Jesus, o divino orientador dos destinos humanos, imortalizou a dor como caminho de elevação humana, ao estampar no Gólgota a imagem do sofrimento como ponte de ascensão ao Alto. É na trajetória de redenção, entretanto, que o prêmio do Senhor traz o sopro salutar que bafeja a morada dos homens. É através da fé e na busca incessante pela espiritualização cotidiana que o homem encontra o ungüento para suas feridas e o remédio que cicatriza suas feridas e cura suas dores.

A medida que a idade avançava, o jovem viu o sustento da mãe e do irmão tornar-se mais difícil, pois a seca afetava os rios, e a colheita comprometia-se ano a ano. Além disso, questões de segurança o levaram a preocupar-se com os destinos de sua família, naqueles rincões já parcialmente abandonados pelas famílias amigas.

É assim que o jovem decide entregar o destino mais uma vez às asas da prece, pedindo compreensão para conduzir da melhor maneira a situação da família, em especial a da mãe e suas questões de saúde mental, que já lhe davam certo trabalho. Deitando-se em silêncio, na noite estrelada e povoada dos sons próprios da paisagem bucólica que o cercava, adormece aquele filho muito especial. Já tendo experimentado a relação com a Imortalidade, vê afastar-se, diante de si, o véu que separa as realidades transitória e eterna, recebendo o amparo que jamais abandona no desabrigo os filhos do Todo- Poderoso.

Pela manhã, com o jeito resoluto que o caracterizaria pelo restante da existência, prepara a mudança. Roma o aguardava, e, naquele momento, podia antever as duras provas que o esperavam. Não via outra solução, no entanto. Iria para a cidade, seguindo o destino do pai - quem diria! -, deixando a mãe aos cuidados do irmão mais novo, que a essa altura já contava 15 anos de idade. Sob os protestos da mãe, deixou para trás aqueles que mais amava, em nome do amor que sentia.

A vida de quem está em processo de mudança exige coragem e determinação. Para transformar uma realidade, é necessária certa cota de energia, que somente é obtida com a dedicação incansável que os novos projetos demandam. Não se constrói nada sem trabalho, e as aquisições do ser exigem planejamento e força de vontade. "Ao empreender a mudança nos aspectos exteriores da vida, é necessário sondar as razões que movem a consciência. Determinar se há mudança íntima e amadurecimento, em lugar de fuga ou repetição dos antigos afazeres, pode ser uma boa medida.

Os dias da soldadesca imperial eram de trabalho duro, de sol a sol. Recrutado pouco tempo após a chegada a Roma, dedicava-se com esmero ao treinamento e esperava com ansiedade o soldo, encerrado o período de trabalho, a fim de que pudesse proporcionar ao irrmão e à mãe os cuidados mínimos necessários à sobrevivência. Da lavoura para o lidar com as ferramentas de batalha, seu caminho foi percorrido com naturalidade, confiante de que, ao menos até aquele momento, não seria necessário enfrentar as lutas sangrentas, que, em seus dias, tinham sofrido interrupção abençoada.

Após séculos de conquistas e investidas, o império conhecia anos de relativa tranqüilidade até mesmo em suas fronteiras. Sem dar-se conta do instante iluminado que vivenciavam, as elites enumeravam contingências políticas e econômicas para interpretar aquele momento, utilizando a soberania de Roma como o grande argumento para explicar o período, que ficaria conhecido como a pax romana. É interessante notar a capacidade humana de ater-se a detalhes periféricos na análise das experiências; muitas vezes escapa ao indivíduo a origem real de suas inquietações.

Longe de imaginar o que ocorria na porção oriental do império, os homens não levantavam suspeita quanto à presença do Rabi, que, àqueles dias, ainda adolescente, preparava seu ministério pelas terras da Judéia. Eram os ventos benfazejos de Nazaré, que abençoavam toda a humanidade. Naqueles dias, o mundo pôde experimentar um período de pacificação nunca antes visto - e jamais repetido -, que intriga até os dias atuais o estudioso da trajetória humana.

Deus sabe prover o ser humano daquilo de que necessita para enfrentar as provas e os desafios peculiares da existência. O servidor atento e dedicado sabe, por sua vez, captar os desígnios da Providência e usufruir a vida de acordo com o que ela lhe permite, sem hesitar em vivenciar a misericórdia e a prosperidade que Deus pode proporcionar. Consciente de seus deveres e de que há uma finalidade em cada coisa, o homem sábio pode enfrentar as batalhas do Si munido dos recursos que a vida lhe dispensou.

É assim que o jovem, amadurecido pelos anos de trabalho árduo, fez-se notar na inteligência e nos dons da ética e da hombridade. Chamado a colaborar no planejamento e nas funções mais estratégicas do comando das tropas, soube surpreender seus superiores hierárquicos com os resultados de suas indicações. Logo chamou a atenção de certos oficiais e, antes do que poderia supor, via-se novamente diante de uma encruzilhada.

Já acompanhado da mãe e do irmão, na cidade, deveria deixá-los mais uma vez, para abraçar a promoção que o levaria a comandar tropas nas terras distantes de Judá. Companheiro fiel e grato, recebe do irmão o encorajamento oportuno e parte uma vez mais, levando na bagagem a saudade dos seus e o desejo de - quem sabe? - encontrar o aconchego no coração de uma dama que o pudesse receber. Ao longo de tantos anos dedicados ao trabalho, esquecera-se dos apelos de sua própria alma juvenil em nome do cuidado dispensado aos familiares e das suas atribuições no império dos Césares.

Longa viagem o separava daqueles que amava. Após um ano de labuta em terras estrangeiras, sentiu desejo de retornar. Sua mãe, falecida ainda em seus primeiros meses de cavalgada, não tinha podido rever. Como esperava poder encontrá-la novamente, recuperada da doença que a consumira lentamente ... Nas noites frias, sob as tendas áridas da paisagem montanhosa, era nela que pensava, lembrando igualmente do pai, de quem tinha tênue memória e que o inspirava nos desafios mais árduos.

Foi então que conheceu jovem mulher e firmou residência nas terras de Judá. Anos se passaram, e o então centurião romano via a casa encher-se de alegria no sorriso dos filhos, que agora o faziam sentir-se realizado, em companhia da amada. Com responsabilidades de escol, o fiel soldado romano transformara-se em chefe de legiões, que comandava buscando realçar a consciência de que estavam em terras ocupadas. Sua mulher, discriminada pela união com um invasor romano, sabia padecer com as críticas até mesmo dos familiares, que não a compreendiam, em nome do amor pelo marido que admirava.

Foi assim que os dois abraçaram-se um ao outro e juntos abraçaram a fé comum ao povo judeu. Ele, já distante da visão de Roma, encontrou em Jeová, o deus hebraico, a expressão de seu amor por Deus. Junto com a esposa, surpreendeu a comunidade ao erguer, a suas expensas e com a mão-de-obra de muitos de seus soldados, que o tinham em alta conta, uma sinagoga como presente aos judeus de Cafarnaum. Conquistara, com o gesto de sua generosidade, não só o respeito, mas a convivência social mais pacífica com os nativos, cujas terras, afinal, estavam ocupadas pelo poderio dos Césares. Fez-se respeitado pela autoridade moral.

É assim que, ao adoecer um de seus servos mais chegados, companheiro desde os dias da distante Roma, aflige-se ao vislumbrar- à semelhança do que ocorrera com seu pai, sua mãe e, a essa altura, também com o irmão mais novo - a partida de um coração querido.

- Senhor ! - interpela-o outro de seus soldados. - Há um profeta a rondar as margens do Tiberíades; ele tem feito prodígios, curado os coxos e devolvido a visão aos cegos.

- Quem é esse homem? Diga-me sem demora.

- Não sei, senhor. É apenas notícia que está sendo comentada nas redondezas.

A inquietação tomou conta daquela alma. Não podia abandonar o companheiro com a sombra da morte a seus pés; ao mesmo tempo, via naquele profeta a única esperança para afastá-la das portas de sua casa.

E o homem entregou -se à oração uma vez mais. Com vistas a compreender melhor o que lhe ocorria e obter a orientação segura, repetiu o gesto de pedir orientação ao divino, que o tinha levado até ali. Decide, então, destacar homens para ir em busca do misterioso profeta e fazer chegar a ele o pedido de misericórdia.

Sem haver ainda encontrado o Mestre, aquele tinha dificuldades em reconhecer a si próprio. Sua mente estava totalmente voltada para o contato com o profeta anunciado. De repente, cenas de um homem de cabelos longos, entre tons de dourado e castanho, tomavam-lhe o sono; de costas, esse homem parecia saber de sua presença e, ainda assim, permanecia impassível, guardando certa distância, ainda que em sonho. Caminhava e caminhava em direção ao Mestre e, por motivos que ignorava, não conseguia dele se aproximar. Despertou inebriado com as imagens que povoavam sua mente e deu novas ordens a seus soldados:

- Diga-lhe que não venha mais, pois não sou digno de receber em minha casa tão grande senhor. Não é o general que vai à casa do centurião, mas o contrário. Mande a ele meus enviados. Da mesma forma como tenho meus comandados, sei que ele tem os dele, e pode curar sem que seja necessário desviar-se de seus caminhos.

É o poder da fé, a grande desconhecida que sempre moveu as grandes almas, na certeza de que os destinos humanos não estão ao desabrigo da paternidade divina. Familiarizado com os dons da mediunidade, via rasgar-se o véu que separa os mundos ainda outra vez, mantendo a confiança nos emissários invisíveis de Jesus para promover a cura de seu servo.

Seus comandados, intrigados com as ordens de seu senhor, obedeceram-lhe duvidosos de sua atitude inusitada. Para surpresa deles, ao encontrarem Jesus, este vira-se para a multidão e declara:

- Nem em Israel encontrei tamanha fé.

A história do centurião representa a alma que crê e a certeza de que a verdade divina toca corações distantes para sua obra. Nem sempre são os primeiros a serem chamados que se fazem escolhidos e, mesmo em meio àqueles que recebem o maior investimento e se pronunciam como representantes da fé divina, encontramos dúvida. A força daquele que soube encontrar nas experiências mais adversas da vida o combustível para a fé surpreende e derruba as pretensões de quem quer que se encontre em posição privilegiada, ao lado do Mestre.

"O Messias veio para os seus, e os seus não o reconheceram" - a passagem evangélica é a expressão de uma verdade que deve sempre nortear a fé daqueles que compartilham do banquete do Senhor, cientes de que Jesus, o divino pastor de almas, sabe cativar a cada um segundo seus domínios e aptidões. O caminho do Cristo é uma estrada plural, e mesmo nos lugares mais inusitados vamos encontrar alguém que, mesmo sem o saber, foi tocado pela doce vibração daquele que nos conduz os destinos.

Estevão