POSFÁCIO
A - JESUS, MENSAGEIRO DA TOLERÂNCIA

Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros. (JOÃO 13:35)

Falar sobre o Evangelho segundo o ponto de vista histórico e relatar as experiências vividas por seus personagens e penetrar em terreno perigoso.

Tocar nesses temas habitualmente desperta reações apaixonadas, e logo se deseja determinar o veredicto com precisão: é verdade ou não é? Está certo ou errado? Permanecemos, seres humanos, atormentados pela necessidade visceral de organizar os eventos em compartimentos de verdadeiro ou falso.

Contudo, nem sempre as questões são assim tão simples, e a realidade é permeada por detalhes que escapam à análise maniqueísta.

Nesse aspecto, prefiro acreditar que a atitude de Jesus com Pilatos é extremamente apropriada até os dias de hoje. Diante da derradeira pergunta: "Que é a verdade?" (João 18:38), o Mestre calou-se. Conforme assevera certo mentor espiritual, talvez Jesus tenha optado por respeitar o momento da humanidade, que ainda não estava apta a compreender integralmente o que seja a verdade.

E por que nós, religiosos de todos os cultos e épocas, inquietamo-nos tanto com a verdade?

Evidentemente, é um assunto palpitante. Do ponto de vista histórico, por exemplo, quem não deseja saber como as coisas de fato ocorreram? Não há curiosidade que resista diante dessa possibilidade. Porém, para a frustração de tantos quantos buscam apurar o néctar precioso da verdade, a filosofia da ciência contemporânea afirma que a verdade, em si mesma, não existe.

Por certo que existe enquanto fato absoluto, mas, ao tentarmos perscrutar-lhe a essência através do pensamento ou da comunicação, ela deixa de existir. O que há, em seu lugar, é tão-somente uma visão possível da verdade.

Tudo o que enxergamos, enxergamos a partir do prisma construído pela nossa própria trajetória e pelas nossas experiências. Ocorre como em matéria de mediunidade: não há comunicação espírita "pura", isto é, que não se utilize dos recursos anímicos, preexistentes no arcabouço mental do médium, e seja por eles determinada.

A comunicação é, invariavelmente, uma parceria medianímica.

Todavia, é importante chegar a certo padrão comum e compartilhado pelo grupo para que possamos nos reunir em torno dele. Em matéria religiosa, por exemplo, é estabelecendo a codificação kardequiana como base que podemos nos sentir pertencentes ao grupo social daqueles identificados como espíritas.

É na obra e no pensamento de Allan Kardec que se assentam nossas convicções, e é nesse território que trocamos experiências.

KARDEC E A VERDADE

Há que se transcender a simples leitura dos textos kardequianos e compreender o espírito que moveu o codificador em suas escolhas, movido certamente, em maior ou menor medida, pelo impulso das falanges do Espírito Verdade. Analisemos dois exemplos que demonstram gestos sábios do codificador com relação à verdade.

O terceiro livro da codificação, O Evangelho segundo o espiritismo, contém os desdobramentos morais da filosofia espírita e tem por base as Leis morais, texto que compõe a terceira parte da obra inaugural O livro dos espíritos. Ao apresentar o novo trabalho, Kardec explica que ali estão reunidas exclusivamente as passagens da vida de Jesus que ilustram seu ensino moral, e que a obra teria por objetivo analisar esse ensinamento moral do Mestre, uma vez que ele é "o terreno em que todos os cultos podem encontrar-se, a bandeira sob a qual todos podem abrigar-se, por mais diferentes que sejam as suas crenças". Amai-vos uns aos outros é a regra de ouro válida em qualquer época ou cultura.

Ora, não que os demais aspectos da vida de Cristo sejam desinteressantes; é que os princípios morais são aqueles diante dos quais as disputas religiosas cessam e todos encontram confluência.

Em O Livro dos Médiuns ou guia dos médiuns e evocadores, que aborda a dimensão experimental e, portanto, científica da doutrina espírita, Kardec também faz uma opção digna de nota. Ao contrário do que talvez pudesse se esperar, ele não redige um manual para reuniões mediúnicas, não estabelece como cada coisa deverá se processar em detalhes.

Mais ainda: a publicação anterior, intitulada INSTRUÇÕES PRÁTICAS para as manifestações espíritas, ele prefere suprimir, conforme nos informa na nota à segunda edição de O Livro dos Médiuns. Argumenta que, fruto de uma necessidade urgente por ocasião da doutrina nascente, aquele livro teria perdido o sentido com a publicação deste. Em vez de determinar regras e um esquema rígido de funcionamento para as reuniões ou mesmo para as sociedades espíritas, Kardec simplesmente traça diretrizes, partilha os frutos de suas observações e pesquisas, cataloga e classifica os fenômenos e apresenta, ao final, apenas a título de exemplo, o regulamento da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas.

Ou seja: Kardec não dá receitas, apenas aponta caminhos. Em perfeita sintonia com a pedagogia mais avançada, não amarra os aprendizes em modelos intransigentes, mas confere a eles a mais poderosa das ferramentas: a liberdade.

É assim que a doutrina espírita faz duas opções que evidenciam sua paternidade superior. Primeiramente, atém-se ao essencial, à verdade maior, que é a necessidade de amar e de vivenciar a caridade na sua mais suprema acepção. Portanto, não perde tempo com sofismas, não se importa se Maria era virgem ou não, não especula sobre a data do nascimento de Jesus, mas também não delimita o campo de investigações futuras. Em segundo lugar, tolera e respeita a diversidade de métodos, estabelecendo tão-somente os princípios sobre os quais devem se pautar os pesquisadores do invisível. Declara que cabe aos médiuns e evocadores a responsabilidade pelos resultados e não discorre se as reuniões devem ser feitas em torno da mesa ou no chão, se os médiuns devem ser em número x ou y, não prescreve técnicas de passe nem de desenvolvimento da faculdade mediúnica. Não restringe os horizontes amplos da verdade, dando à doutrina condições de progredir indefinidamente.

Tais opções refletem um codificador muito sensato, que aprendeu com o Mestre o que havia de melhor.

Leonardo Moller